Dez anos após ocupação pelas forças de segurança, Alemão e Penha voltam para mãos do tráfico


As imagens das forças de segurança ocupando os dois maiores redutos do tráfico no Rio — os complexos do Alemão e da Penha — e da debandada de traficantes debaixo de tiros, no fim de novembro de 2010, impressionaram até os mais céticos. Em alguns dias, após uma sequência de ataques de traficantes, o Estado conseguiu assumir o controle daquela área. A reboque da megaoperação, vieram as promessas do fim de uma era de domínio do crime. “Essa política vai dar certo”, garantiu, após a ocupação, o então governador Sérgio Cabral, hoje preso e condenado a mais de 300 anos de prisão.

O tempo, porém, frustrou as expectativas. Ao longo de dez anos, moradores e policiais assistiram ao declínio do programa de pacificação e à consequente debandada dos serviços que tinham sido conquistados. Os investimentos anunciados em 2010 pelo governo federal eram de R$ 827 milhões. Todo esse dinheiro não foi capaz de manter o controle do território, com mais de 100 mil moradores, na mão do Estado.

O tráfico foi, aos poucos, se fortalecendo e voltando a dominar as favelas. Atual secretário de Polícia Civil do Rio, o delegado Allan Turnowski era o chefe da corporação durante a ocupação do Alemão e da Penha. Ele admite o retrocesso, apesar de acreditar que o tráfico ainda não se fortaleceu como era em 2010.

— Em matéria de território, voltamos sim (ao que era antes da ocupação). Hoje, quem domina aquele território não é o Estado. É o tráfico. Mas não voltou a ser um entreposto da facção como era naquela época. E é bom frisar que a gente não pode abrir mão desse território — pontua Turnowski.

Os relatos de policiais que atuam ou já atuaram nas UPPs dos dois complexos vão ao encontro da avaliação do secretário. O domínio do território pelo tráfico faz com que a área pela qual os PMs podem transitar nas favelas seja restrita. Em sua grande maioria, os policiais ficam baseados em pontos específicos ou dentro das bases, e são poucos os que fazem patrulhamento pelos becos e vielas. Aqueles que se movimentam em viaturas priorizam as ruas principais. Um PM ouvido pelo EXTRA estima que 90% do território esteja sob o domínio do tráfico no Alemão. A situação se reflete na produtividade policial, em queda nos últimos anos.

Apreensão de armas no Complexo do Alemão
Apreensão de armas no Complexo do Alemão Foto: Rodiney Barbosa Teixeira

‘Não houve planejamento. Foi um erro’

O sociólogo e professor da Uerj Ignácio Cano, ao avaliar a situação atual das UPPs do Alemão e da Penha, afirma que ambas foram um erro de planejamento e execução:

— A entrada das UPPs não foi planejada como em outros locais. Foi uma reação a um momento obscuro de ataques em série no Rio. Não houve planejamento, a área é muito grande, com muitas dificuldades. Naquele momento e como foi feita, a entrada da polícia foi um erro.

O coronel Mário Sérgio Duarte comandava a Polícia Militar na ocupação. Ele defende que a operação foi necessária em razão das ações do tráfico no estado à época, opinião compartilhada por Turnowski. Criminosos queimaram veículos, fizeram arrastões e atacaram policiais.

— A inteligência dizia que as ordens (dos ataques na cidade) partiam do Alemão. Entendíamos que era mais fácil tomar os morros da Fé, Sereno e Caixa D’Água (na Penha) para ir avançando sobre as outras (comunidades). Tínhamos que ir comendo esse mingau pela beirada. Antes disso, eu achava que a gente não conseguiria tomar o Alemão em menos de 15 dias. Mas aquilo se transformou numa janela de oportunidade e tivemos que agir — relembra.

Mário Sérgio reconhece, no entanto, os retrocessos no processo, mas crê que a situação atual ainda é melhor do que antes da ocupação:

— Aquilo foi um processo de libertação (da população) que foi mal aproveitado. Mas a situação hoje está longe de ser aquela de antes da ocupação. O tráfico já não mantém o mesmo controle. Os traficantes não tem essa facilidade de sair (da favela) e realizar confrontos com quadrilhas rivais. A ação, influência do tráfico no entorno já não são mais as mesmas.

Entrevista com o secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski

O secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski
O secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski Foto: Márcia Foletto/ Agência O Globo

Por que chegamos a esse estágio no Alemão e Penha?

Primeiro, quando se isolou a PM nas UPPs, sem integração com a Polícia Civil e as investigações, decretaram o fim do projeto. E os gestores não permitiram mostrar eventuais retrocessos dentro do programa, tentaram esconder. Isso é muito ruim. Deveria ter sido feito com muita transparência perante a sociedade, para tentar reverter esse quadro. Ao permitir a volta do traficante, você perde a confiança da população.

A polícia perdeu a oportunidade de agir?

Sim. Após a ocupação era o momento de prendê-los sem armas, fora da comunidade. No mundo inteiro, trabalha-se com tecnologia, inteligência e menos homens. No Rio, se multiplicou o número de homens e o investimento foi zero em tecnologia e inteligência. Voltamos à Idade Média, quando quem tem o maior exército é mais forte.

Foi uma utopia planejar uma ocupação sem armas?

Se ali imaginaram que a polícia não precisaria estar armada para manter um local onde um grupo adversário tem armas, claro que foi utopia. Foi um erro estratégico.

Qual é a solução para a situação nos dois complexos?

Reconstruir as UPPs aos poucos. Sem medo de errar, de ter que dar passos para trás e de corrigir. A gente nunca pode abrir mão daquele território.

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Fonte: Fonte: Jornal Extra