Corpo de traficante morto no Jacarezinho apresentava sinal de ‘disparo à curta distância’, indicou perito do MP


Um laudo elaborado pelo Grupo de Apoio Técnico Especializado (Gate) do Ministério Público do Rio (MP-RJ) aponta que o tiro que matou Omar Pereira da Silva durante uma operação policial no Jacarezinho foi efetuado “à curta distância”. O documento, obtido pelo GLOBO, está anexado ao processo que tem os agentes Douglas de Lucena Peixoto Siqueira e Anderson Silveira Pereira como réus. No último sábado, a Justiça aceitou a denúncia do MP-RJ contra a dupla pelos crimes de homicídio doloso (no caso de Siqueira) e de fraude processual (para ambos).

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No texto, o médico legista Sezisnando José Primo Paes, que assina o laudo, afirma que a “ferida de entrada localizada na região torácica esquerda apresentava efeitos secundários (orla de tatuagem), tendo as características das feridas produzidas por disparo à curta distância”. O perito diz no documento que “acompanhou parcialmente” o exame cadavérico de Omar, já que era “o único técnico do Ministério Público a acompanhar as necrópsias” nos 27 suspeitos mortos na operação, que também vitimou um policial civil. Desse modo, relata Paes, enquanto era realizado o exame em Omar, foi preciso observar “concomitamente duas necrópsias e as imagens produzidas”.

Quarto de uma das casas onde Omar Pereira da Silva estava, na comunidade do Jacarezinho, em 6 de maio
Quarto de uma das casas onde Omar Pereira da Silva estava, na comunidade do Jacarezinho, em 6 de maio Foto: Foto: Rio de Paz / Divulgação

O fato de ter acompanhado “procedimentos técnicos diversos” ao mesmo tempo volta a ser citado pelo profissional na sequência do laudo, quando ele diz não ser viável afirmar “de modo tecnicamente inequívoco” se Omar foi atingido no peito por um projétil de alta energia — um tiro de fuzil, por exemplo. Ele pontua ainda que, embora seja “possível observar evisceração” no ferimento de saída, “aparentemente de segmento de alça intestinal”, não é possível discernir com certeza o calibre da bala.

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Ao ser ouvido no decorrer das investigações, o próprio Douglas de Lucena Peixoto Siqueira confirmou ter atirado com um fuzil na direção de Omar. “Devido ao estresse do momento, o declarante não se recorda de quantos disparos efetuou contra o traficante”, contou o policial civil no depoimento, cuja íntegra também consta no processo. Siqueira inicia o relato informando que, durante uma troca de tiros em que também ficou ferido por estilhaços, “acertou o pé de um dos traficantes”.

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O suspeito, que seria Omar, “correu para se abrigar em uma casa enquanto atirava com uma pistola na direção do declarante e de seu colega”, prosseguiu o agente. “Além da pistola, o referido traficante estava também portando uma granada”, assegurou. A dupla de policiais teria, então, entrado no segundo andar do imóvel para onde seguiu o suspeito. “O declarante viu uma granada de mão saindo da direção de um quarto”, afirmou Siqueira, e “avistou o traficante dentro desse quarto, empunhando uma pistola em sua direção”. Foi neste momento que, segundo ele, foram efetuados os disparos de fuzil.

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Para os promotores, entretanto, a versão apresentada pelo policial não condiz com a verdade. Testemunhas asseguraram que Omar estava desarmado e ferido quando foi encontrado pelos agentes na casa. Os dois réus teriam apresentado na delegacia uma pistola e um carregador, alegando falsamente que foram recolhidos junto do suspeito. O relato de Siqueira também não contempla a possibilidade de disparo à curta distância apontada no laudo.

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O ferimento no pé descrito por Siqueira é citado na análise do perito Sezisnando José Primo Paes. No texto, o médico legista cita uma “incompatibilidade” entre o o Boletim de Atendimento Médico (BAM) e o laudo elaborado pelo Instituto Médico-Legal (IML), já que este último documento não trazia qualquer menção à “lesão no pé direito” — esta sim, segundo ele, produzida seguramente por um “projétil de alta energia”.

Afastados das funções

Ao aceitar a denúncia contra Douglas e Anderson, a juíza Elizabeth Louro, da 2ª Vara Criminal, referiu-se à incursão no Jacarezinho da qual os dois participaram como a “mais trágica operação policial do estado“. A magistrada determinou que os agentes sejam afastados de qualquer operação policial a ser realizada, exercendo apenas funções internas. Além disso, eles não podem atuar de nenhuma maneira na região onde ocorreram os fatos, “aí incluída a frequência ou acesso a unidades da PCERJ ou da PMERJ que lá existam”. Fica em frente à comunidade, por exemplo, a Cidade da Polícia, onde estão as sedes da maior parte das delegacias especializadas da Polícia Civil, incluindo a própria Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), em que a dupla estava lotada.

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Os policiais também estão proibidos “de manter contato com qualquer pessoa que saiba ser moradora” do Jacarezinho, “dentre as quais se acham as testemunhas arroladas”. “Isso porque — pelo que consta nos autos e dada a gravidade dos fatos sob análise — os apontados agentes não estariam aptos a figurarem em operações policiais externas, sob pena de pôr em risco a ordem pública”, justificou Elizabeth Louro em outro trecho da decisão.

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o advogado Gabriel Habib, que representa os dois policiais, classificou as determinações da magistrada como “exageradas” e adiantou que irá contestá-las na Justiça. Em uma nota divulgada à imprensa, o defensor alega que “a morte de Omar foi decorrente de anterior intensa troca de tiros entre policiais de um lado, e, de outro lado, os traficantes armados com pistolas, fuzis e granadas”. Ele afirma ainda que o suspeito portava “uma granada de guerra e uma pistola importada com ‘kit rajada'”. O texto prossegue: “Deve ser destacado que Omar foi socorrido com vida pelos policiais e levado ao hospital”.

— Se agiram em legítima defesa, não tem porque afastar de funções — argumenta Habib, acrescentando: — Pediremos a absolvição sumária de ambos já no início do processo.



Fonte: Fonte: Jornal Extra