Correr maratona com um amigo é como doping – 05/05/2024 – No Corre


Um amigo se prepara para correr, depois de longo interregno, uma maratona. Será sua 13ª, se entendi bem. Como já disse aqui, maratona é um rematado fetiche, e nós, adeptos dessa improvável distância, exercemos aí uma simples preferência, tão caprichosa como decidir doravante só tomar vinhos europeus, ou melhor, vinhos do Velho Mundo.

Mas o imaginário da corrida amadora não tem isso estabelecido, e maratonistas aos olhos dos iniciantes somos dignitários de status especial.

O amigo escolheu a maratona de Porto Alegre, sua cidade de origem e onde suas experiências anteriores no 42K jamais foram “brilhantes” –simplesmente terminar a prova para esse amigo está longe de definir o brilho de sua, como diz, “performance”.

Pois bem: a cerca de 40 dias do evento, ele já começa a vencer distâncias razoáveis, praticando modelo de treinamento canônico, submetido à lógica da periodização. Atingem-se distâncias como 32K e 35K em treinos a mês, mês e meio da competição, e, a partir daí, tira-se o pé, diminuindo dramaticamente a rodagem no final. É quando entra em cena o “polimento”, para evitar desgastes desnecessários.

Peço desculpas antecipadas (veio-me à cabeça o sinônimo “escusa”, utilizado em geral por quem se constrange em pedir desculpas) pela profusão de jargões, mas raramente o corredor amador vai encontrar na praça um modelo de treinamento e um vocabulário alternativos.

Tampouco terá facilidade em achar quem compartilhe da visão deste colunista, de que treino não é exatamente treino, mas simplesmente mais uma corrida. Ou seja, nada muito diferente de uma prova, com a possível diferença da água grátis, da medalha, das platitudes do animador ao microfone e da superlotação. E dos 150 a 200 paus empenhados.

Não se trata, guardem as pedras, de desvalorizar a prova, mas de realçar o dia a dia.

O amigo me convidou para “treinar” com ele em São Paulo esta semana. Sua meta era rodar 28K, e ele, mesmo um tanto cético em relação a esses produtos, muniu-se inclusive de um suplemento energético, que desceu mal quando tomou-o no bosque da USP, lá pelos 16K de nossa corrida.

Em dado momento, tive um insight: o que estávamos fazendo não ajudava em nada sua preparação. Correr longas distâncias é um desafio sobretudo mental, partindo do princípio de que nossos corpos estão mais ou menos acostumados a rodar por algumas horas.

E correr acompanhado é, como diziam, mamão com mel. Conversa vai, conversa vem, já estávamos nos 15K, distância que é verdadeiro parto quando a corrida é solitária. Ter chegado aos 23K, quando já voltávamos para o ponto de origem, foi uma boiada.

Se houvesse um controle antidoping na corrida amadora, eu começaria proibindo as conversas. Não deve ser difícil implantar essa restrição, dado que o capitalismo despeja mais e mais dinheiro em sistemas de vigilância movidos a inteligência artificial.

Não é incomum que amigos de corredores apareçam estrategicamente lá pelos 32K, 33K de uma maratona, região da corrida que alguns treinadores chamam de “muro” e outros de “hora em que o urso te agarra”.

A claque vem correndo ou pedalando, às vezes de skate, e motiva o parça a deixar a tentadora caminhadinha para depois da linha de chegada.

Eu já bati algumas vezes no muro, caminhando trechos em algumas maratonas, mas não me senti por isso o pior dos mortais, como, ao contrário, se sentiria meu amigo caso acontecesse com ele. Nas minhas dez maratonas, eu estive sempre sozinho.

Dois companheiros estarão com meu amigo em Porto Alegre, mas ele disse que cada um seguirá em seu próprio ritmo.

E como esta coluna fala bastante da capital gaúcha, fica aqui minha solidariedade algo trôpega a quem tanto perdeu neste enésimo cataclismo no Sul; fica também a repulsa ao negacionismo ambiental, notadamente entre alguns parlamentares que interditam não apenas o fluxo financeiro para fazer frente às tragédias como o próprio debate.


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Folha de S.Paulo