O artigo do ensaísta Davi Lago para o blog nesta semana No ano de 1984 o filósofo italiano Norberto Bobbio já refletia sobre a possibilidade da informática alterar a estrutura da democracia representativa. Na época, ele chamava isso de “hipótese da futura computadorcracia”, que seria a possibilidade do exercício da democracia direta pelos cidadãos através de votos informatizados. A questão que se levantou foi: o avanço da tecnologia seria capaz de criar uma “democracia informatizada” onde todas as pessoas não precisariam mais de representantes políticos?
Bobbio considerou este cenário impraticável, pois, a julgar pelas leis promulgadas a cada ano, os cidadãos seriam convocados a exprimir o próprio voto ao menos uma vez por dia. Mais do que isso, segundo Bobbio, o excesso de participação poderia ter como efeito a saciedade de política e o aumento da apatia eleitoral. O professor fez uma afirmação intrigante em sua obra “O futuro da democracia”: “o preço que se deve pagar pelo empenho de poucos é frequentemente a indiferença de muitos. Nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia”. Em outras palavras, Bobbio se opôs ao “cidadão total” termo depreciativo proposto por Ralf Dahrendorf para descrever o indivíduo saturado de militância política, incapaz de fazer outra coisa na vida.
O filósofo italiano Norberto Bobbio
Arquivo família Bobbio
Hoje as redes sociais, smartphones e conexões wi-fi integram concretamente o dia-a-dia de bilhões de pessoas ao redor do mundo. De igual modo, a participação política via digital já é uma realidade. Podemos não ter a possibilidade de votar diretamente em tudo, mas podemos opinar sobre tudo, o “cidadão pilhado” já é uma realidade. A ação política já ocorre de múltiplas formas novas como, por exemplo: parlamentares que utilizam aplicativos para consultar seus eleitores em tempo real; chefes de Estado que trocam ofensas via Twitter; milícias digitais robotizadas que aniquilam reputações políticas e assim por diante. Desse modo, os efeitos das novas tecnologias se revelam mistos ao senso comum: há avanços, como as novas possibilidades de fiscalização e transparência dos atos do poder, mas também há retrocessos, como a espetacularização dos discursos de ódio por exemplo.
Mas independente deste ou daquele benefício ou malefício, é importante ressaltar a lição estrutural de Bobbio, que é respaldada pela reflexão política desde a experiência democrática na Atenas clássica: a importância das instituições. Mesmo a democracia direta necessita de instituições. Não existe na história exemplo de sociedade civilizada sem arcabouço institucional. As instituições são instâncias intermediárias entre o “povo” e o núcleo do poder do governo. Na prática são comumente reunidas em três grandes grupos: (1) o conjunto de organizações e agências do Estado; (2) o conjunto de regras do jogo, práticas e procedimentos estabelecidos; e (3) o conjunto de valores, crenças e posturas compartilhados em alguma medida por todos os participantes da comunidade política.
Em sua famosa afirmação John Donne afirmou que “nenhum homem é uma ilha”. Diante do cidadão pilhado da vida contemporânea podemos lembrar ainda que nenhum homem é uma pilha. O advento das novas mídias estabeleceu uma lógica de curto prazo, corriqueira e banal dando a falsa impressão de que é possível resolver questões políticas complexas sem balizas institucionais, com meras frases de efeito. Assim, em nossa sociedade do espetáculo é enorme a quantidade dos que aspiram oferecer surpresas diárias com polêmicas, escândalos, falsos dilemas, tudo em busca da atenção dos outros. Especialmente no campo político o voluntarismo destituído de contrapesos institucionais traz consequências desastrosas como revelam, em especial, as experiências totalitárias do século passado. O saneamento da sociedade parte da constatação e enfrentamento da realidade, não da alienação e do improviso.
* Davi Lago é escritor, mestre em Teoria do Direito e pesquisador. Colabora com o blog com textos sobre marcos civilizatórios e sociedade contemporânea