Em julho de 2014, Tífani Cristini Suppo da Silva, de 22 anos, teve o celular roubado ao sair de uma festa em Cachoeira de Macacu, cidade com menos de 60 mil habitantes a 110 quilômetros da capital. Quatro meses depois, ela recebeu de um amigo, em seu novo aparelho, cinco fotos sensuais de nudez que havia tirado com o ex-namorado, com quem teve um relacionamento de oito anos. As imagens armazenadas na época pelo casal foram vazadas, a jovem se desesperou e precisou do apoio da família. Em 2020, 43 queixas de registros não autorizados de intimidade sexual chegaram às delegacias do Rio.
— Me senti exposta, violada, invadida. Na hora, fiquei desesperada, não entendia por que, depois de tanto tempo, isso foi acontecer. Precisei escutar os conselhos dos meus amigos e parentes para tentar não me importar tanto, para que aquilo não causasse ainda mais transtornos à minha vida. Foi um momento muito difícil — relata Tífani.
Pela primeira vez, o Dossiê Mulher do Instituto de Segurança Pública (ISP) analisou o chamado registro não autorizado da intimidade sexual. Este é um crime recente, previsto na Lei 13.772, de 19 de dezembro de 2018, que reconheceu a violação da intimidade da mulher como violência doméstica e familiar e criminalizou o registro não autorizado de cenas de nudez ou ato sexual — qualquer produção, verdadeira ou não, com conteúdo sexual de caráter privado e íntimo sem autorização dos participantes.
O relatório mostra que 91% dos registros desse crime em 2020 têm mulheres como vítimas, sendo que dois terços desse percentual são solteiras. Em sua maioria, jovens brancas de 18 a 29 anos. Como grande parte dos crimes cometidos contra as mulheres, mais da metade aconteceu dentro de uma residência, e cerca de 30% dos autores eram companheiros ou ex-companheiros.
Feminicídio: em quase 20% dos casos de 2020, filhos presenciaram o assassinato de suas mães
Medo e vergonha
Titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Duque de Caxias, a delegada Fernanda Fernandes explica que as vítimas chegam à unidade com medo e vergonha. Muitas delas perdem os empregos, são repreendidas pelas famílias e até expulsas da igreja que frequentam. Algumas também passam a ser achacadas virtualmente por pessoas que prometem não divulgar o conteúdo das imagens, mediante pagamento de valores.
— Esse tipo de crime sempre aconteceu, mas, não tendo uma tipificação legal, fazíamos uma ginástica jurídica para indiciar quem o cometia por injúria ou difamação. Com a nova lei, vimos uma enxurrada de casos, também pelo aumento significativo da chamada pornografia da vingança, quando a vítima manda a foto para alguém durante um relacionamento, mas não consente que ele divulgue. Com o término, ele acaba por compartilhar a imagem nas redes sociais e por aplicativos de mensagens — explica a delegada. — Então, é preciso que fique claro que, a partir do momento que se registra um nude, não há mais controle sobre esse arquivo e a pessoa precisa ter consciência dos riscos de exposição que corre. Embora a pena hoje seja maior para o criminoso, para a vítima ela pode ser perpétua.
Por causa das suas características, o registro não autorizado é reconhecido como uma violência psicológica, classificação que abrange qualquer conduta que cause dano emocional ou perturbe o pleno desenvolvimento da mulher. No geral, esse tipo de violência se dá através de ameaça, constrangimento, humilhação, isolamento, manipulação, vigilâncias constantes, perseguição e violação de intimidade. E pode estar associado à diminuição da autoestima e a prejuízos à saúde mental, gerando problemas de ansiedade e depressão que podem perdurar por toda a vida.
— A inclusão do registro não autorizado da intimidade sexual no Dossiê Mulher é muitíssimo importante e mostra que o Rio está acompanhando atentamente a evolução das diversas formas como as mulheres podem ser vitimadas e como esses crimes são praticados — enfatiza a também delegada Marcela Ortiz, diretora-presidente do ISP.
Agressão psicológica
De acordo com o dossiê, a proporção de mulheres que sofrem violência psicológica em relação às outras formas de violência no estado foi de 31,6% em 2020, estando atrás apenas da violência física. No ano, a média mensal foi de 2.595 vítimas — cerca de 86 por dia ou três por hora. Os registros apresentaram um declínio acentuado entre março e maio, meses em que as restrições sociais devido à pandemia de Covid-19 aumentaram. Nos meses seguintes, eles tiveram um crescimento, chegando a 2.936 em agosto.
O documento mostra ainda que a progressão entre as formas de violência ocorre de forma gradual. O autor do crime tende a começar com o cerceamento da liberdade individual da vítima, impedindo que saia e isolando-a do contato com familiares e amigos, depois a constrange e a humilha. Com a autoestima abalada, a mulher passa a se sentir diminuída e, mais facilmente, passa a “tolerar” cada vez mais agressões verbais até ser agredida fisicamente.
Fonte: Fonte: Jornal Extra