Relatório do inquérito que investigou homicídio de João Pedro omite que policiais alteraram cena do crime


O relatório final da investigação da Polícia Civil sobre o assassinato do adolescente João Pedro Matos Pinto, morto aos 14 anos durante operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, omite que os policiais alteraram a cena do crime. O EXTRA teve acesso ao documento e a várias peças do inquérito. Ao longo da investigação, há diversas provas de que os três policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) que fizeram disparos naquele dia recolheram estojos — parte da bala expelida no momento do tiro — que saíram de seus fuzis, prejudicando o trabalho da perícia. Nenhuma dessas evidências é sequer mencionada no relatório final, assinado pelo delegado Bruno Cleuder de Melo.

O projétil que matou João Pedro, segundo o perícia feita na munição encontrada em seu cadáver, é de calibre 5,56mm. Dois dos três policiais que deram disparos na casa, no entanto, utilizavam fuzis desse mesmo calibre: os agentes Mauro José Gonçalves e Maxwell Gomes Pereira — conforme ambos relatariam em depoimentos à Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo (DHNSG) na semana seguinte ao crime. Ao todo, eles afirmam ter dado, juntos, 28 tiros no jardim do imóvel. Em cada disparo, a arma expele um estojo.

Perícia estimou localização de policial no momento do disparo, mas não conseguiu apontar quem atirou
Perícia estimou localização de policial no momento do disparo, mas não conseguiu apontar quem atirou Foto: Reprodução

No dia do crime, 18 de maio, no entanto, os policiais não entregaram estojos de calibre 5,56mm na DH. Não há nenhuma menção no registro de ocorrência elaborado na especializada naquele dia sobre a existência de estojos do tipo no local. Só consta, no documento, menção a três estojos calibre 9mm — que os agentes alegaram terem encontrado próximo a uma pistola que, segundo eles, teria sido abandonada por traficantes.

A perícia de local de crime, logo após o assassinato, também não encontrou nenhum estojo de calibre 5,56mm na casa. No laudo, o perito Thiago de Azevedo Hermida descreve que somente achou sete estojos no local: três de calibre 9mm — aqueles que os agentes apontaram como produzidos por uma arma de um traficante — e quatro de calibre 7,62mm. O terceiro policial que entrou na casa, Fernando de Brito Meister, usava uma arma do tipo.

Como havia 64 marcas de tiros na casa, a disparidade entre o número de buracos nas paredes e estojos encontrados não passou despercebida pelo perito. No laudo, ele apontou que “o número de estojos coligidos à hora dos exames periciais, em muito diverge dos impactos de projéteis de arma de fogo colimados por todo o cenário em tela”.

Cartuchos entregues após uma semana

Nos depoimentos que prestaram no dia do crime, os agentes não afirmaram que coletaram os estojos antes da perícia. No entanto, no dia 25 de maio, uma semana após o homicídio, os três policiais voltaram à DHNSG e entregaram 19 estojos de calibre 5,56mm. O registro de ocorrência do caso, então, foi aditado, e os estojos finalmente passaram a constar na lista de bens apreendidos.

Marcas de tiros na janela da casa onde aconteceu o crime
Marcas de tiros na janela da casa onde aconteceu o crime Foto: João Luis Silva / Rio de Paz

Nos novos depoimentos que prestaram, nenhum dos agentes citou onde os estojos ficaram guardados nem sequer foram questionados sobre o motivo de terem recolhido a munição. O relatório final do inquérito não menciona que os cartuchos foram recolhidos antes da perícia e nem que eles foram entregues somente uma semana depois.

Em seu segundo relato, o policial Mauro Gonçalves mudou seu depoimento. Na ocasião, ele revelou que usava um fuzil 5,56mm quando entrou no imóvel. No dia do crime, ele havia afirmado que só fez disparos com um fuzil 7,62mm. A arma também foi apreendida uma semana após o crime.

Peritos ouvidos pelo EXTRA afirmam que a retirada dos estojos prejudicou a investigação. “Os estojos no local do crime poderiam determinar a localização exata dos atiradores”, afirma o perito e professor de Medicina Legal da Uerj Nelson Massini.

A investigação não conseguiu identificar o responsável pelo disparo fatal. Os agentes foram indiciados por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Não houve indiciamento pelo crime de fraude processual, pela alteração do local do crime.

João Pedro foi morto com um tiro disparados pelas suas costas
João Pedro foi morto com um tiro disparados pelas suas costas Foto: Reprodução

Em nota, a Polícia Civil afirmou que “a coleta dos estojos pelos próprios policiais, tratando-se de área conflagrada, não importa na configuração de fraude processual”.

Confira a nota na íntegra:

“1) A coleta dos estojos no local dos fatos pelos próprios policiais, tratando-se de área conflagrada, por si só, não importa na configuração de fraude processual, seja pela necessidade de comprovação do elemento subjetivo do tipo penal (dolo), seja pela previsão do artigo 158-C do Código de Processo Penal, que afirma que a coleta de vestígios deve ser feita preferencialmente por perito oficial. Por fim, esclareça-se que os estojos arrecadados pelos familiares da vítima foram apresentados na DHNSG por uma servidora do Ministério Público em uma sacola plástica de cor rosa (conforme certidão nos autos do IP), após ter passado pela Defensoria Pública, sem que a perícia tenha sido imediatamente acionada no momento da arrecadação.

2) No entendimento da Autoridade Policial que relatou o inquérito, a apreensão posterior de estojos arrecadados no local, seja pelos policiais comunicantes ou pelos familiares da vítima (apresentados posteriormente pelo Ministério Público, após terem sido acautelados na Defensoria Pública), não alteraram o convencimento final do relatório do inquérito. Dessa forma, não mereceu o tema ser tratado de forma específica.

3. A apreensão posterior de um dos fuzis utilizados pelo Policial Mauro José Gonçalves no dia da operação foi objeto de questionamento pela Autoridade Policial quando de sua inquirição, tendo sido mencionada expressamente no corpo do Relatório Final do Inquérito. Como afirmado anteriormente sobre os estojos, a DHNSG realizou as apreensões no instante da apresentação extemporânea.”



Fonte: Fonte: Jornal Extra