Obra em área dominada pela milícia faz lagoa desaparecer na Zona Oeste do Rio


Antes: vista aérea da lagoa em 2004
Depois: o espelho d’água praticamente desapareceu

A construção ilegal de um condomínio numa área dominada pela milícia fez uma lagoa desaparecer na Zona Oeste do Rio. O sumiço foi constatado durante uma vistoria feita pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) no dia 29 de abril por determinação do Ministério Público, que abriu um inquérito para apurar denúncias de que paramilitares estariam por trás do empreendimento. No local — um terreno que era ocupado por um parque no bairro de Paciência —, técnicos do órgão descobriram que, para aumentar a área comercializável do negócio clandestino, duas lagoas contíguas que formavam um espelho d’água de 40.100m² viraram um pequeno lago de apenas 3.000m².

Comparando imagens aéreas antigas da região, de 2004, com a situação atual, funcionários do Inea descobriram que uma das lagoas, a menor, com 13.600m², já desapareceu completamente. Já a maior, que tinha 26.500m², perdeu quase 90% de sua extensão. No local, funcionava o Rio Rural Park, famoso entre os moradores da Zona Oeste nos anos 1990. O local chegou a ser usado para locações de novelas e recebia eventos como shows e vaquejadas.

Na vistoria, funcionários do Inea descobriram ainda que um canal artificial, feito com manilhas instaladas recentemente, drena água da lagoa até um córrego próximo, com o objetivo de aterrar o local para a construção de um condomínio residencial de 612.000m², o que corresponde a mais de 60 campos de futebol. Em um relatório, técnicos do órgão ambiental informaram que constataram “a abertura de vias internas em ambas as margens do córrego, categorizadas como áreas de preservação permanente, bem como dezenas de casas, algumas já construídas e aparentemente habitadas, outras em construção”.

Antes: vista aérea da lagoa em 2004
Antes: vista aérea da lagoa em 2004

Lotes do condomínio — que já tem sua entrada principal construída, na Estrada Santa Eugênia — estão à venda na internet. Uma página anuncia “ótimos terrenos em Paciência, medindo 10m x 25m, a partir de R$25 mil à vista”. De acordo com o site, as unidades contam com “água, luz e esgoto” e se encontram “prontas para construir”.

Apesar de os terrenos já estarem à venda, a obra é ilegal. Segundo o Inea, a construção não tem Licença Ambiental Municipal de Instalação, exigida por lei estadual. Ao final da vistoria, técnicos determinaram o embargo das obras após detectarem “a intervenção não autorizada em corpo d´água (drenagem de lagoa) e arruamento em área de preservação permanente”. O órgão também mandou “interromper, de imediato, o fluxo de água da lagoa para o córrego, realizado através de obra de drenagem, a fim de preservar a integridade do corpo hídrico impactado” e impôs pagamento de uma multa aos responsáveis pela obra na Zona Oeste.

Antigos frequentadores reclamam

O condomínio tem até um estande de vendas, onde fiscais encontraram uma arquiteta que se identificou como responsável pelo empreendimento. Questionada sobre a licença exigida pelo Inea, a mulher afirmou que não havia qualquer documento no local. Ao final da vistoria, fiscais afixaram na entrada uma placa com um aviso de embargo.

Frequentadores do local lamentam a atual situação. “Além da temperatura alta devido ao desmatamento, o bairro está abandonado”, escreveu uma ex-moradora numa postagem da página “Antiga Santa Cruz”, no Facebook, que tem imagens do Rio Rural Park em funcionamento.

Manilhas foram colocadas para drenar água da lagoa
Manilhas foram colocadas para drenar água da lagoa Foto: Reprodução

Denúncia revelou o crime

O Ministério Público estadual abriu um inquérito motivado por uma denúncia de que o terreno havia sido “tomado por milicianos, que estão aterrando um grande lago natural para fazer loteamentos irregulares e comercializá-los, além de terem desviado um curso da água”. A 2ª Promotoria de Tutela Coletiva ao Meio Ambiente e Patrimônio Cultura decidiu, então, “identificar e qualificar os responsáveis e verificar se a empreitada no local possui licença de obras e licença ambiental”.

A presença da milícia no local foi registrada pelos técnicos do Inea no dia da vistoria. “Destacamos a elevada periculosidade que o local oferece ao corpo de fiscais, tendo em seu entorno as comunidades de Antares, do Aço e Ás de Ouro, dominadas por grupos paramilitares”, escreveram os funcionários em um relatório. Eles foram à região acompanhados por policiais militares, devido ao risco de serem abordados por criminosos.

Fiscais ouviram disparo

Durante a vistoria, fiscais relataram ter escutado “um ruído forte, semelhante a um disparo de fuzil”. Eles não se aproximaram das favelas que fazem limite com o terreno e, por isso, não conseguiram medi-lo com precisão.

A milícia controla a região desde o final de 2018. Até então, as favelas do Rola e Antares, nas proximidades do terreno, eram dominadas pela maior facção do tráfico do Rio. Procurada para comentar a situação da região, a PM informou, em nota, que atua em apoio a órgãos que fiscalizam o ordenamento urbano. A corporação ressaltou que milicianos têm formas de agir que dificultam o flagrante de crimes e pediu a colaboração da população por meio do Disque Denúncia (2253-1177).

Por sua vez, a atual gestão da Polícia Civil lembrou que criou uma força-tarefa contra milícias e que já interditou diversos empreendimentos ilegais. Agentes realizaram mais de 80 operações e prenderam cerca de 650 suspeitos.



Fonte: Fonte: Jornal Extra