‘O Estado tirou tudo da gente. Não pago imposto para ter filho morto’, diz pai de Kathlen, vítima de bala perdida no Lins


“O Estado tirou tudo da gente. Não foi bandido ou policial, foi o Estado. Seja lá quem for (que atirou), foi tudo o Estado. Ele é o responsável por tudo isso. Eu não pago imposto para isso. Eu não pago imposto para ter filho morto”. Pouco mais de 24 horas após enterrar a filha, Kathlen de Oliveira Romeo, de 24 anos — grávida morta no Complexo do Lins, na Zona Norte do Rio, na última terça-feira, dia 8, durante um suposto confronto entre PMs da UPP da comunidade e bandidos — a mãe da jovem, a administradora Jackeline de Oliveira Lopes, de 40 anos, criava nesta quinta-feira, dia 10, forças para tentar entender o que aconteceu. Em uma entrevista exclusiva ao EXTRA, Jackeline e o pai da jovem, o personal trainer Luciano Gonçalves, de 43, deixavam vir à tona as lembranças da sua única filha, “alegre, forte e com muita luz”. A atual residência da família, onde os três viviam há pouco mais de um mês, fica a menos de um quilômetro da antiga casa, na comunidade do Lins.

— Minha filha sempre foi muito alegre. Desde pequena, muito falante e curiosa. Kathlen não tinha limites, era imprevisível. A única coisa previsível era o amor que ela tinha. Brigávamos porque ela sempre gostou de mudança. Quando ela chegou aqui na casa nova, foi logo pedindo para mudar a cor do quarto. Ela pintou de branco e estava fazendo tudo do jeito dela — diz Jackeline.

Luciano Gonçalves no quarto da filha
Luciano Gonçalves no quarto da filha Foto: Luiza Moraes

Kathlen, que com o namorado Marcelo Ramos haviam acabado de comprar um apartamento em Piedade, também na Zona Norte, usava sua formação de designer de interiores para planejar o quarto do bebê, que se chamaria Zayo, a terra prometida na simbologia hebraica, ou Maya, nome que sugere a pureza da água ou o amor materno.

Jackeline, ontem, olhava com carinho as roupinhas e os sapatinhos da criança, comprados por Kathlen, por ela e por amigos.

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A ausência da filha faz com que as lembranças ganhem mais espaço. Luciano Gonçalves se lembra da ocasião em que Kathlen, pintando o quarto do filho, errou a mão da tinta e pediu ajuda. A jovem estava afastada da loja onde trabalhava por conta da gravidez e da pandemia da Covid-19:

— Ela me ligou e disse: “Pai, fiz algo errado. Pode me ajudar?”. E eu falei: “Claro. Pode deixar que eu acabo de resolver aí”. Minha filha estava preocupada com tudo que estava acontecendo. Mais por conta das dívidas. Eu iria falar para ela que, durante toda a gravidez, nós iriamos nos apertar e pagar as contas dela. Mas eu não tive esse prazer de dizer isso. A minha filha foi embora antes.

Jackeline abraça o marido Luciano
Jackeline abraça o marido Luciano Foto: Luiza Moraes

O personal trainer conta que só queria dar uma vida melhor para a família quando decidiu deixar a favela:

— Durante quase 25 anos, a Kathlen dormiu com a gente. Há menos de um mês ela passou a ter seu próprio quarto. Ela tinha as coisinhas dela. Tinha a cama, o guarda-roupa. Ela estava muito feliz porque, pela primeira vez, tinha privacidade. Não é errado querer uma vida melhor para os nossos familiares. Agora, eu perdi a minha filha e o meu neto.

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Jackeline é forte em criticar a postura das autoridades em relação a política de segurança do estado:

— É diferente o trato da polícia na Zona Sul e na Zona Norte. Lá tem educação. E os políticos? Será que entraram na casa do Sérgio Cabral (preso durante a operação Lava-Jato) metendo o pé na porta? Será? Quando eu falo que o trato é diferente, eu não quero que cheguem lá e tratem como os daqui. Eu quero que tratem os daqui como tratam os de lá. Não é assim: aqui você me bate e lá tem que bater também. Não. Lá você não bate, mas também não quero apanhar aqui. Só queremos os mesmos direitos. A gente só mora em lugares diferentes.

Jackeline de Oliveira Lopes, mãe de Kathlen
Jackeline de Oliveira Lopes, mãe de Kathlen Foto: Luiza Moraes

Para o pai de Kathlen, o Estado precisa rever a política de segurança.

— A política de confronto é a de enxugar gelo. O Estado tem que intervir na raiz. E qual é a raiz? É a ressocialização. Um trabalho de base e inteligência. É preciso ter uma reformulação total nesse tipo de incursão, principalmente nas periferias e nas favelas. E para mudar esse jeito genocida, truculento e desumano com que eles entram. Eu falava, há pouco tempo, que existem pessoas erradas em todo lugar. Mas com os errados da classe alta eles entram com a mão. Já o errado ou as pessoas que eles as julgam erradas (na favela) eles entram com o pé, com fuzil e com sangue. Isso tem que acabar, tem que mudar. Somos todos vítimas. Eu não tenho aversão ao policial. Fui militar durante muito tempo. Eu tenho amigos policiais e de todas as esferas de segurança, do mais alto escalão até o menor.

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Luciano faz um apelo ao governador Cláudio Castro:

— A mensagem que eu mandaria para o governador, ou para os políticos, é que eles sejam mais humanos e menos preceituosos. Que olhem para as pessoas que precisam e necessitam e façam um trabalho de base para as pessoas menos favorecidas.

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Por sua vez, Jackeline de Oliveira Lopes espera que a morte de sua filha não seja em vão. Ela garante que não havia tiroteio no momento em que a filha foi baleada:

— O (major Ivan) Blaz (porta-voz da PM) disse que não teve operação e que eles foram recebidos a tiros. A gente sabe que não foi nada disso. O Blaz não estava lá. Ele está comprando uma versão que falaram para ele. Não foi nada disso. O Estado tirou tudo da gente. Não foi bandido ou policial, foi o Estado. Seja lá quem for, foi tudo o estado. Eu não pago imposto para isso.

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Na tarde desta quinta-feira, dia 10, o deputado Alexandre Knoploch (PSL), acompanhado de um forte aparato de segurança, usando um colete a provas de balas e portando um fuzil, esteve no local onde Kathlen foi morta. O parlamentar disse ao EXTRA que estava lá para fazer um relatório que será apresentado à Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa (Alerj).



Fonte: Fonte: Jornal Extra