Novos chefes do jogo do bicho apostam em aliança com milícia


Assim que foi informada sobre o assassinato do bicheiro Fernando Iggnácio, uma autoridade da área de segurança estremeceu de irritação. “Ele não podia ter feito isso conosco”, reclamava, referindo-se ao suspeito do crime. Sua lógica enxergava no atentado ao contraventor, no dia 10 de novembro do ano passado, uma quase traição às forças policiais. Afinal, os chefões da jogatina passaram praticamente os últimos anos sem incômodos, enquanto a polícia priorizava o combate ao tráfico de drogas e às milícias.

Livres das barras da lei, os bicheiros que predominaram, após uma interminável matança pela hegemonia territorial, consolidaram-se no topo da hierarquia criminosa do estado, impulsionados não apenas pelas máquinas de caça-níqueis espalhadas pelas comunidades periféricas, mas por um portfólio de negócios escusos que inclui alianças estratégicas com milicianos.

Esse crime organizado no Rio entrou o século 21 sem a preocupação dos seus antecessores em forjar a imagem de benfeitores sociais. Figuras sorridentes como o capo Castor de Andrade, cuja história está sendo mostrada pelo documentário “Doutor Castor”, na GloboPlay, deram lugar a chefões violentos e mal-humorados, que sentem desconforto no posto de patronos de escolas de samba e sofrem para evoluir na Sapucaí sob os aplausos das arquibancadas. Não há tempo a perder nas guerras pela sucessão do poder nas famílias do bicho e no avanço de milicianos sobre os espólios da jogatina.

Rogério Andrade no desfile da Mocidade de 2014
Rogério Andrade no desfile da Mocidade de 2014 Foto: Rafael Moraes

As mortes dos barões Castor de Andrade (1997) e Waldemir Garcia, o Miro (2004), desencadearam uma sangrenta e interminável disputa pelo espólio familiar. Pelos Garcia, já tombaram Maninho (filho de Miro, em 2004), José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal (genro de Miro, 2011), Mirinho (filho de Maninho, 2017) e Alcebíades Paes Garcia, o Bid (irmão de Maninho, 2020), sem citar outros integrantes da quadrilha. Pelos Andrade, Paulinho (filho de Castor, 1998), Diogo (filho de Rogério Andrade, sobrinho de Castor, 2010) e Fernando Iggnácio (genro de Castor, 2020).

Atentado ao filho de Rogério Andrade, em 2010
Atentado ao filho de Rogério Andrade, em 2010 Foto: Gabriel de Paiva

A sequência não parou. No dia 30 de janeiro, Adriano Maciel de Souza, o Chuca, ex-policial militar, perdeu a perna esquerda ao ser baleado, junto com um segurança, dentro de um carro na Barra da Tijuca. A polícia suspeita que o crime pode estar associado a uma parceria entre Welllington da Silva Braga, o Ecko, visto como o principal chefe de milícia da cidade, e o contraventor Bernardo Bello, ex-genro de Maninho e acusado pela ex-cunhada, Shanna, de tentar matá-la. Essa suposta aproximação entre os dois seria mais um indício da aliança entre setores do bicho e da milícia.

Inquérito da Divisão de Homicídios, obtido pelo EXTRA em 2014, sustentou que Chuca fazia parte de uma quadrilha que explorava o jogo do bicho e máquinas caça-níquel em dez bairros da Zona Norte.

Novos negócios

Desde a Operação Gladiador, deflagrada em 2006, investigações mostraram que os bicheiros não estavam mais limitados aos negócios da jogatina. Na época, começavam a entrar pesado no contrabando de cigarros. Porém, crimes recentes revelam sinais de que os contraventores investem em negócios públicos, com integrantes flagrados em esquemas de corrupção, como Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, e na franquia à milicia de territórios para a exploração de caça-níqueis, especialmente na Baixada de Jacarepaguá (a milícia paga aos bicheiros pelo uso da máquina).

Fernando Iggnácio foi assassinado com tiros de fuzil ao descer de helicóptero no Recreio
Fernando Iggnácio foi assassinado com tiros de fuzil ao descer de helicóptero no Recreio

Desacertos nos novos negócios, sempre vinculados à disputa territorial, ajudam a explicar os homicídios do ex-presidente da Portela, o sargento da PM Marcos Falcon; o do sargento da reserva da mesma corporação Geraldo Pereira, ambos em 2016; e o do contraventor Haylton Carlos Gomes Escafura, em 2017. Falcon era o presidente da Portela e candidato a vereador quando foi executado. Uma das linhas de investigação indica que ele avançava influência sobre territórios da milícia.

A aliança bicho-milícia enraizou-se em comunidades carentes, bairros de classe média, bairros nobres como a Barra da Tijuca e nas escolas de samba. À frente do Escritório do Crime — grupo de matadores de aluguel —, o ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega (assassinado em confronto com a polícia baiana em fevereiro em 2020) representou um dos elos mais fortes entre as duas quadrilhas. Enquanto consolidava o seu poder em Rio das Pedras, endereço de uma das mais poderosas milícias da cidade, Adriano avalizou nos últimos anos tomadas de poder em pelo menos duas escolas: Salgueiro e Vila Isabel. Suas digitais também são investigadas na morte de Falcon.

Aliança de Ecko com bicho
Aliança de Ecko com bicho

A Vila Isabel foi a que experimentou a presença mais ostensiva do miliciano. A Polícia Civil e o Ministério Público do Rio encontraram entre os pertences de Adriano dois crachás da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio (Liesa), dos anos de 2016 e 2017, em que ele aparece como diretor da Vila. Adriano era também braço direito de Bernardo Bello quando este assumiu o controle da Vila Isabel. Aqui, a trajetória da Vila se cruza com a de outra escola bem próxima na geografia dos morros cariocas, o Salgueiro. Bello foi casado com Tamara, uma das filhas de Maninho, bicheiro ligado à vermelho e branco.

Risco de traição

O ex-capitão do Exército Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, ainda todo-poderoso, teria dado aval para Bernardo ocupar a presidência da Vila. Já o bicheiro Rogério Andrade usava milicianos na sua segurança, sendo alguns envolvidos na execução de adversários. Entre eles, um dos acusados do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), o policial militar reformado Ronnie Lessa.

Há famílias que tentam conduzir a sucessão sem derramamento de sangue. Aniz Abraão David, o Anísio, da Beija-Flor, entregou a escola a seu filho mais novo, Gabriel. Outra família que seguiu esse caminho foi a de Antônio Petrus Kallil, o Turcão, que morreu de pneumonia em 2019. O filho Marcelo assumiu os negócios em Niterói. O neto, Marcelinho, ficou com a Viradouro, campeã em 2020. Mas as alianças são frágeis e não garantem um cenário de harmonia. As milícias passaram a ocupar pequenas escolas de samba pelo apoio popular e, como temem bicheiros, tomar futuramente o poder no Grupo Especial e o dinheiro que por ali circula.

Segurança é preso

O sargento reformado da PM Márcio Araújo de Souza, apontado pela Delegacia de Homicídios da Capital (DHC) como segurança do bicheiro Rogério Andrade e acusado de ser mandante da morte do também contraventor Fernando de Miranda Iggnácio, em novembro do ano passado, foi preso na noite de anteontem. O PM, de 52 anos, se apresentou na DHC e recebeu voz de prisão. Para DH, Araújo é o principal suspeito de ter contratado os quatro matadores de aluguel que, segundo as investigações, executaram Fernando Iggnácio. O crime aconteceu numa empresa de táxi aéreo, no Recreio dos Bandeirantes. Pelo menos três tiros de fuzil atingiram sua cabeça.



Fonte: Fonte: Jornal Extra