Escutas mostram que colecionador acusado de vender armas para o tráfico ‘tinha medo’ de não receber o dinheiro dos criminosos


Escutas telefônicas realizadas com autorização da Justiça apontam que Vitor Furtado Rebollal Lopes, conhecido como Bala 40, de 35 anos, demonstrava receios ao negociar com traficantes do estado. Preso na última segunda-feira, em Goiânia, ele é acusado de se valer de registros como colecionador e atirador esportivo para adquirir armas e munição legalmente e revendê-las à maior facção criminosa do Rio. Também são acusados de integrar a quadrilha a namorada de Vitor, Paula Cristinne Pinheiro Labuto, de 28 anos, também presa, e o irmão dela, Leonardo Pinheiro Labuto, de 39, que segue foragido.

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É Leonardo quem aparece na gravação captada conversando com um interlocutor não identificado na denúncia do Ministério Público contra o grupo. No diálogo — que, segundo os promotores, trata da venda de munição —, o homem diz: “Seu cunhado parece que está com medo. Quer que pegue primeiro o dinheiro para depois levar o bagulho lá”. A referência, ainda de acordo com os investigadores, é a Vitor.

Vitor Furtado Rebollal Lopes e a namorada, Paula Cristinne Pinheiro Labuto: casal foi preso
Vitor Furtado Rebollal Lopes e a namorada, Paula Cristinne Pinheiro Labuto: casal foi preso Foto: Reprodução

Leonardo, então, responde: “Brota aqui em casa que a gente vai de moto e fala pessoalmente com os caras”. A pessoa do outro lado da linha retruca: “Tem 20 caixas?”. “Não, tem a metade”, arremata Leonardo. Na sequência, o interlocutor volta a fazer, supostamente, menção a Vitor: “O cara queria que eu fosse lá no Rato e pegasse o dinheiro com os caras referente a 20 caixas, para depois levar. Ele é maluco”. Rato, neste contexto, seria a comunidade do Rato Molhado, no Engenho Novo, na Zona Norte do Rio.

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Apesar do tom da conversa, a investigação que culminou na apreensão de 54 armas — sendo 26 fuzis — na casa de Vitor no Grajaú, bairro vizinho ao Engenho Novo, aponta que ele acabou adotando outra postura. De acordo com a polícia, a confiança entre os envolvidos nas transações passou a ser tanta que muitas vezes Vitor só recebia o pagamento após a entrega aos compradores. Pelo volume de armamento movimentado pelo grupo, há a desconfiança de que a quadrilha também fazia negócios com outras facções do tráfico e até com milicianos.

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As escutas telefônicas também apontam que Vitor utilizava aplicativos de mensagens para realizar as vendas. De acordo com a denúncia, assinada pelos promotores Romulo Santos Silva, Sérgio Luis Lopes Pereira e Antonio Carlos Fonte Pessanha, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), a Polícia Civil chegou até o trio a partir do relato de um informante. O documento indica que os agentes receberam “informações de um colaborador no sentido de que Vitor participava de grupos no WhatsApp para vender drogas, armas e munições”. A investigação em questão teve início em 2018, e Vitor, Paula e Leonardo foram alvo de escutas telefônicas autorizadas pela Justiça entre os dias 11 e 25 de setembro daquele ano.

Em uma das conversas captadas, Leonardo e Paula falam, segundo os promotores, sobre o fornecimento de munição de calibre 9mm e .40 para o Complexo do Lins e a favela do Jacarezinho, ambos na Zona Norte. Leonardo chega a contar à irmã que “deixou umas balas para teste, bala boa” no Lins.

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Também constam na denúncia diálogos entre o casal. Em um deles, eles fazem contas sobre uma transação: “Paula, faz as contas aí. 32 x 5.000. O produto é 5.000 cada um, e eu tenho 32”, diz Vitor à companheira. Os investigadores também flagraram várias ligações feitas pelo colecionador para lojas de armamento legalizadas, “a fim de obter informações sobre compras de armas, munições e pólvoras”. Os promotores prosseguem: “Tais conversas, aliadas aos demais elementos colhidos nos autos, demonstram que ele adquire material bélico licitamente em lojas legalizadas para sua posterior revenda no mercado negro”, sobretudo para a maior facção criminosa do estado, “tudo com a ciência e participação de sua namorada Paula e de seu cunhado Leonardo”.

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“Pelo teor das conversas interceptadas, é possível constatar que Leonardo e seu cunhado Vitor atuavam como fornecedores de munições às comunidades do Rio de Janeiro comandadas pela facção Comando Vermelho, mormente as do Jacarezinho, Rato Molhado, Morro do Engenho, Manguinhos, Complexo do Lins e Parque União”, escrevem os promotores em outro trecho da denúncia.

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A polícia ainda tenta entender por que Vitor comprava o material em Goiás, onde ele foi preso com a namorada. No veículo do casal, havia 11 mil unidades de munição de fuzil. Segundo os investigadores, Vitor possui 43 Certificados de Registro de Arma de Fogo (Crafs) ativos e vinculados ao estado no Centro-Oeste. Com cada um desses documentos, fornecidos pelo Exército, Vitor podia comprar mil projéteis por ano legalmente. E, como as autorizações estão em seu nome, ele próprio fazia, de carro, o transporte dos itens para o Rio.

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Só os 26 fuzis encontrados na casa do Grajaú são avaliados em R$ 1,8 milhão, mas todo o material apreendido no local supera os R$ 3 milhões. Além de Vitor, Paula e Leonardo, a denúncia do MP também mira em outras 17 pessoas, todas acusadas de ligação com o tráfico de drogas em diferentes comunidades do estado.

Regras flexibilizadas

Desde que assumiu a Presidência, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro tem feito sucessivas ações para permitir o acesso da população a armas de fogo, parte delas contestadas no Supremo Tribunal Federal (STF). Na mais recente, decretos que entraram em vigor em abril do ano passado flexibilizaram, entre outras medidas, as regras para que os chamados CACs (colecionadores, atiradores e caçadores) adquiram armas.

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Antes, qualquer compra de armamento por CACs precisava de autorização de aquisição expedida pelo Comando do Exército. Agora, isso só é necessário quando a quantidade de armas exceder o limite que cada categoria pode comprar (60 para atiradores, 30 para caçadores e dez para colecionadores). Além disso, o laudo que permitia que alguém fosse CAC, antes fornecido apenas por psicólogos credenciados pela Polícia Federal, passou a poder ser emitido por qualquer profissional da área.

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— O CAC pode ter armas em situações específicas, dentro de determinadas regras. O problema é achar que será tudo seguido à risca. Se a pessoa consegue adquirir fuzis em grande quantidade e revender, há claramente uma falha de fiscalização — diz João Paulo Martinelli, advogado criminalista e professor do Ibmec.



Fonte: Fonte: Jornal Extra