Após sequestrar Maria Aparecida de Paiva, de 65 anos, na Zona Sul do Rio e interná-la a força em clínicas psiquiátricas da Região Serrana, Patrícia de Paiva Reis retirou as roupas da aposentada de seu apartamento e ainda alugou o imóvel. Em classificados online, a moça anunciou o dois quartos, na Rua do Catete, com internet e garagem, por R$ 1.168 por noite — o preço aumentou diante da alta demanda na região durante o carnaval. Ela e seu marido, Raphael Machado Costa Neves, estão presos temporariamente pelos crimes cometidos contra a idosa.
“Situado no Rio de Janeiro, com a Praia do Flamengo e a Escadaria Selarón nas proximidades, o apartamento tem vista panorâmica do Palácio do Catete, ao lado do Aterro do Flamengo, com TV 75″, internet 220 Mbs e garagem. Oferece acomodações com Wi-Fi gratuito e estacionamento privativo gratuito. O Teatro Municipal do Rio de Janeiro fica a 2,5 km do apartamento, enquanto o Museu de Arte Moderna está a 2,9 km da propriedade. O aeroporto mais próximo é o Aeroporto Santos Dumont”, diz o texto do anúncio.
De acordo com as investigações da 9ª DP (Catete), o imóvel foi alugado no período em que Maria Aparecida era mantida em cárcere privado em duas clínicas em Petrópolis. Uma semana antes do sequestro, a aposentada chegou a ingressar com um pedido de medida protetiva contra a filha. Na ação, ela alegou ter sido vítima de violência doméstica por parte dela, que se negava a deixar seu apartamento e a ameaçava de internação. Na decisão, porém, a juíza Camila Rocha Guerin avaliou que caso não se enquadrava no âmbito da Lei Maria da Penha, em que é necessária a submissão da vítima baseada no gênero feminino.
“Não há nenhum elemento que demonstre ter a requerida se utilizado de eventual fragilidade ou hipossuficiência a vítima para praticar os atos descritos no registro de ocorrência. Logo, sua conduta não foi baseada no gênero, como exige a Lei 11.340/06, sendo, portanto, incompetente este juízo para processar e julgar o presente feito. Por isso, declino da competência para o juízo competente, por não estar configurada violência doméstica e familiar contra a mulher no caso em comento”, escreveu, em seu despacho, a magistrada em exercício no I Juizado de Violência Doméstica Familiar do Tribunal de Justiça do Rio.
No documento, ao qual o EXTRA teve acesso, Guerin ainda determinou que a ação fosse remetida ao Juizado Especial Criminal competente. O pedido foi feito por Maria Aparecida dias após Patrícia ter acionado o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) afirmando que a mãe estaria em surto psicótico. Na ocasião, a aposentada relatou à Justiça que ela disse que se não fosse sua filha iria agredi-la.
Em um laudo assinado pela equipe do Samu, os médicos constataram que a idosa, no apartamento da família, no Catete, na Zona Sul do Rio, não apresentava transtornos ou agressividade, mas se referia a filha com medo e retração, aparentando temê-la. O documento mostra que Maria Aparecida “apresentava discurso coeso, linear e coerente” e informou sobre a “relação conturbada” com a filha. Na ocasião, ela aceitou ser atendida e examinado, “apresentando sinais vitais estáveis e sem alteração no exame físico, dizendo haver história pregressa de enxaqueca”.
O laudo aponta ainda que a equipe médica presenciou a interação entre a aposentada, Patrícia; seu genro, Raphael Machado Costa Neves; e os dois seus dois netos, de 2 e 9 anos. Os dois adultos foram presos em flagrante por policiais da 9ª DP, na última sexta-feira, e indiciados pelos crimes de sequestro triplamente qualificado e coação no curso do processo. Na delegacia, eles se recusaram a prestar depoimento.
“Paciente apresentou comportamento carinhoso com os netos, porém, ao conversar com a Sra. Patrícia, esta informou que iria restringir a entrada de uma amiga da paciente. A paciente relutou sobre a decisão, mas a Sra. Patrícia referiu que o apartamento era dela e que ela faria o que quisesse. A partir desse momento, iniciou-se uma discussão sobre os bens materiais, não sendo mais necessário o atendimento do Samu, visto se notar um conflito familiar”, escreveram os médicos.
‘Acusações caluniosas’
No documento, também é mencionado que, durante o atendimento, os profissionais contactaram uma advogada que disse conhecer a idosa havia anos. Ela informou que a aposentada não possui doença ou alteração psiquiátrica, mas confirmou a relação familiar conturbada e disse ainda que Patrícia costumava fazer “acusações caluniosas” contra a mãe.
Ao deixar o prédio, os médicos do Samu ainda relataram terem sido abordados por duas moradores e um funcionário, que afirmaram que a Maria Aparecida “nunca apresentou alterações e sempre houve boa convivência” e também afirmaram que ela era ameaçada por Patrícia. Eles os questionaram sobre como buscar auxílio da Secretaria Municipal de Assistência Social, já que filha acionava o Corpo de Bombeiros e a Polícia Militar com frequência para intervir na comunicação entre ambas.
De acordo com o delegado Felipe Santoro, titular da 9ª DP (Catete), ao longo dos últimos 17 dias, apesar de não ter nenhuma doença ou necessidade terapêutica, idosa foi mantida na unidade particular de saúde a fim de ser coagida a se retratar de uma notícia crime que havia feito denunciando maus-tratos contra os dois netos, de 2 e 9 anos, na Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV).
As investigações apontam que ao ser abordada por dois homens, na Rua do Catete, no início da tarde de 6 de fevereiro, a idosa acreditou se tratar de uma “saidinha de banco” ou um sequestro relâmpago, mas logo percebeu que a violência acontecia a mando de sua filha, já que um dos criminosos disse que “era coisa de família”.
Fome e sede
Colocada em uma ambulância, a aposentada narrou ter chorado durante todo o trajeto até Petrópolis e, ao chegar na clínica, teve a bolsa e o celular retirados pelos funcionários, sendo colocada em um quarto sem janela nem ventilação por três dias. No local, ela disse ter sofrido com fome e com sede e gritado diversas vezes por socorro. Depois, a idosa relatou ter sido levada para um espaço coletivo, onde passou a ser obrigada a ingerir medicações.
Em depoimento, a vítima disse ainda que questionava os médicos por sua alta, mas ele passava por ela e não a respondia. Durante o carnaval, ela contou ter recebido a visita de sua filha e do companheiro dela. O casal teria relatado a idosa que tentaria desqualificar o registro feito por ela na DCAV, demonstrando que ela sofria de “desequilíbrio mental”.
Aos policiais, a vítima narrou ainda que ambos os netos, um deles portador de deficiência mental, sofrem maus-tratos, não recebendo alimentação e asseio adequados. Depois de alguns dias internada, a idosa diz ter sido novamente colocada à força em uma ambulância e levada para outra unidade psiquiátrica. No local, ela contou a uma médica o desejo de sua filha em ficar com a integralidade da pensão que ambas dividem.
Fonte: Fonte: Jornal Extra