‘Chamar isso de operação ofende quem é mãe’, diz parente de vítima um mês após mortes


Um mês após a operação policial no Jacarezinho, que resultou na morte de 28 pessoas, sendo a mais letal da história do Rio, diversas entidades se reuniram na entrada da comunidade, neste domingo, dia 6, para lançar a pedra fundamental de um monumento em homenagem às vítimas. O evento contou com a presença de familiares das vítimas e líderes comunitários, além de representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Defensoria Pública e da Comissão de Direitos Humanos da Alerj.

O ativista Rumba Gabriel, compositor da Mangueira e fundador do Portal Favelas, espera que o ocorrido seja um mal que veio para o bem, ao lançar luz sobre o que acontece nas comunidades cariocas. Ele denuncia o abandono de diversas instâncias do Estado no Jacarezinho, onde não haveria projetos sociais oficiais.

— Como as favelas recebem essa quantidade de drogas e armas, com todo o aparato policial que temos? A favela não produz droga nem arma. Aqui não tem traficante, tem varejista de droga. Os traficantes estão nas fronteiras, nos bairros chiques. Por que a inteligência da polícia não vai nessa direção? — questiona. — Nós gritamos para não sermos fuzilados, mas nosso grito é criminalizado.

Moradores e parentes de vítimas do Jacarezinho se reuniram na comunidade um mês após ação que resultou em 28 mortes
Moradores e parentes de vítimas do Jacarezinho se reuniram na comunidade um mês após ação que resultou em 28 mortes Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

O evento foi aberto pelo ativista, que, depois de discursar, pediu um minuto de silêncio em respeito às vítimas. A homenagem foi direcionada não só aos civis, mas também ao policial morto durante a operação. O memorial ainda não tem data para ser erguido, mas o plano é fazer a instalação na entrada da favela. Os organizadores buscam artistas plásticos para realizar o projeto.

Uma das pessoas mais emocionadas era Adriana Santana de Araújo, mãe de Marlon Santana. Além de perder o filho, ela ainda foi vítima de notícias falsas, acusada de participar de um vídeo em que apareceria com uma arma de air soft (utilizada em esportes como paintball e sem potencial letal), como se fosse um fuzil. A gravação, que viralizou nas redes sociais, na verdade mostrava Rosana Rosa Contas do Carmo, de 49 anos, e a mãe, a costureira Vera Lúcia Coutas, de 69, com o equipamento esportivo.

Com unhas feitas em manicure e sobrancelhas micropigmentadas, a mulher que cuida de sua aparência, conta que ficou oito dias sem conseguir tomar banho após perder o filho. Tomando quatro remédios diferentes por conta do trauma, ela levou um banner cobrando explicações do Estado sobre o ocorrido. Entre as fotos, um retrato do dia das mães de 2020:

— Este ano, no dia das mães, eu estava enterrando o meu filho. Não quero mais comemorar a data. No ano que vem, vou ficar no quarto, com o casaco dele, sentindo o cheiro — diz ela, que ficou aliviada com a perícia independente solicitada pelo Ministério Público. — Chamar isso que aconteceu de operação policial ofende quem é mãe.

A autoproclamada “mãe leoa”, conta que trocou mensagens com o filho durante o tiroteio. Ela acredita que ele tenha morrido por volta das 9h, quando parou de responder. Além do luto, Adriana diz que ainda tem que lidar com ameaças de morte enviadas por mensagens na internet.

— Ninguém pode imaginar como dói. O Marlon era o dono do meu abraço. Tiraram esse abraço de mim covardemente com um tiro nas costas.

Na manhã deste domingo, comunidade do Jacarezinho se reuniu para lançar a pedra fundamental de memorial em homenagem às vítimas de ação da polícia
Na manhã deste domingo, comunidade do Jacarezinho se reuniu para lançar a pedra fundamental de memorial em homenagem às vítimas de ação da polícia Foto: Maria Isabel Oliveira / Agência O Globo

Mãe de Isaac, uma das 28 vítimas, Tatiane Teixeira denuncia o tratamento desrespeitoso que recebe durante operações policiais.

— Minha casa parece doce. Sempre vão lá — diz.

Ela admite que o filho era procurado pela polícia, mas ressalta que não há pena de morte no Brasil:

— Meu filho tinha que ser preso, não morto. Isso não é normal. Ele deixou uma namorada grávida de cinco meses.

Representando a ouvidoria da Defensoria Pública, Guilherme Pimenta ofereceu apoio e acolhimento às famílias. A instituição vem cobrando independência nas investigações, para que o caso não seja apurado por um ente envolvido na ocorrência. Em seu discurso, ele classificou o ocorrido como “inaceitável”.

— Esse não foi um fato isolado, e sim parte de uma história sendo escrita de forma errada muitos anos — afirmou.

Para Margarida Prado, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB e representante da ordem no Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, o argumento usado para a operação — proteger crianças contra o aliciamento pelo tráfico — não se sustenta:

— Há décadas esses espaços de comunidade são excluídos de políticas públicas de cidadania. O único momento em que os jovens são vistos é quando são acusados de crimes.

Por telefone, a vice-presidente da comissão, Nadine Borges, criticou o sigilo de cinco anos imposto pela Polícia Civil sobre operações — incluindo a do Jacarezinho. Para a advogada, a falta de transparência pode enfraquecer o conjunto probatório. A OAB, como uma entidade observadora, defende que a apuração não fique circunscrita à corporação.

— O sigilo imposto fere frontalmente a Lei de Acesso à Informação, que é bem específica: não há sigilo em casos com indícios de violações dos Direitos Humanos — afirma.

A deputada Dani Monteiro (PSOL), presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, ressaltou a diferença entre a favela e o asfalto no trato por parte do Estado:

— Aqui não existe a lógica do respeito, só a do controle social.

Ao fim do ato, o ativista Rumba Gabriel revelou uma articulação de diferentes entidades de direitos humanos e de coletivos para propor uma ação popular cobrando o cumprimento da lei que determina a instalação de câmeras em viaturas e fardas policiais. Ele também ressaltou a necessidade de instalar núcleos da Defensoria Pública e do Ministério Público nas favelas para coibir o que chamou de “pé na porta”, em referência ao tratamento recebido por moradores de comunidades. Ele finalizou sua fala cantando um samba ainda inédito de sua autoria, que diz: “quem foi que disse que Isabel deu liberdade mentiu”.



Fonte: Fonte: Jornal Extra