Em fevereiro de 2020, a pandemia de Covid-19 chegou ao Brasil. Temendo prejuízos, a máfia que domina o jogo do bicho e as máquinas caça-níqueis no Rio resolveu reduzir despesas. O anúncio foi feito por um aplicativo de mensagens: “Corte de 50% aí. Só enquanto houver esse problema aí. O nosso público é um público mais assim, bem mais antigo, e aí tá com um sério problema aí”, avisou, por áudio, o sargento PM reformado Márcio Araújo de Souza, apontado como o chefe da segurança de Rogério Andrade, um dos chefões do jogo ilegal na capital. O destinatário da mensagem era um oficial da PM que, à época, era lotado num batalhão da Zona Norte da cidade. Para o Ministério Público do Rio, Araújo estava comunicando ao interlocutor que o corte de custos atingiu até o pagamento das propinas pagas a policiais para que a quadrilha não fosse incomodada.
Os áudios extraídos do celular de Araújo — obtidos pelo EXTRA — revelam como opera a tropa que atua a serviço da contravenção. Além de escancarar as mesadas pagas a policiais civis e militares, os arquivos também mostram que a segurança pessoal de Rogério Andrade é formada e chefiada por PMs que deveriam combater o jogo ilegal. Alguns deles conciliam o trabalho na corporação com a escolta do bicheiro há mais de duas décadas.
Em outro áudio enviado pelo segurança de Rogério ao oficial PM, Araújo afirma que que os cortes também vão afetar o pagamento de propina a policiais civis. “Não é só aqui não, entendeu? Pessoal que joga lá no Botafogo também, no campo do Botafogo também. Geral. O senhor pode até fazer uma pesquisa aí. Eu creio que é só esse mês aí, entendeu? Só enquanto perdurar esse probleminha aí sabe? Crise mundial. Não é nem nacional, crise mundial, entendeu?”, diz Araújo. Segundo um relatório produzido pelo Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP sobre os áudios, a menção ao Botafogo é uma referência às cores das viaturas da Polícia Civil, pretas e brancas, como o uniforme do time.
A troca de mensagens aconteceu em 25 de março de 2020. O segurança do bicheiro ainda pede para seu interlocutor repassar a informação sobre o corte no batalhão: “Pediu pra comunicar aí de um em um, entendeu?”. Ao final, o oficial responde afirmativamente: “Beleza”.
Araújo está preso há um ano, acusado de ser o responsável por contratar os pistoleiros que executaram o também bicheiro Fernando Iggnácio num heliponto na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, em novembro de 2020. Iggnácio e Rogério Andrade eram desafetos e protagonizaram uma guerra familiar que durou mais de 20 anos pelo espólio criminoso de Castor de Andrade, capo do jogo do bicho carioca morto em 1997.
Rogério, sobrinho de Castor, chegou a ser denunciado pelo MP pelo assassinato de Iggnácio, genro do chefão, e teve a prisão decretada pela Justiça. No entanto, na semana passada, Rogério conseguiu trancar o processo a que respondia pelo homicídio no Supremo Tribunal Federal (STF). As mensagens do celular de Araújo estão anexadas à ação penal a que ainda respondem o PM reformado e mais quatro acusados de serem os executores do homicídio de Iggnácio.
Uma outra conversa encontrada no aparelho revela que PMs trabalham como seguranças de Rogério Andrade desde a década de 1990. “Ô parceiro! Nós entramos aí em 98, parceiro! Nós vimos tudo acontecer”, se gaba o então subtenente da PM Daniel Rodrigues Pinheiro a Araújo, seu chefe na hierarquia da contravenção. Pinheiro é apontado pelo MP como o agente escolhido por Araújo para fazer a escolta pessoal do bicheiro.
Em 1998, ano citado por Pinheiro, Rogério assumiu os negócios da família após a morte de Castor e do assassinato de seu filho e herdeiro natural, Paulo Andrade. O sobrinho do capo chegou a ser condenado pelo crime, mas o julgamento foi anulado, e Rogério acabou absolvido num segundo júri.
Nos áudios, Pinheiro cita a relação de décadas com o bicheiro para provar a Araújo que ele ainda era confiável. Segundo o MP, pouco antes da conversa, o subtenente havia sido desligado da função de segurança pessoal de Rogério porque seu irmão — o sargento Ademir Rodrigues Pinheiro, outro PM que integrava a equipe de segurança do bicheiro — teria causado um prejuízo financeiro à organização criminosa. “Infelizmente, esse idiota (Ademir) fez isso, entendeu, meu parceiro? Comprometeu a mim, podia comprometer você também, entendeu?”, afirmou o subtenente.
Atualmente, nenhum dos irmãos Pinheiro segue nas fileiras da PM. Ambos foram expulsos da corporação no início de fevereiro justamente pela ligação com Rogério Andrade. Em setembro de 2017, os dois foram flagrados por câmeras de um hospital, na Barra da Tijuca, fazendo a escolta do bicheiro quando a mulher de Andrade foi baleada. Os irmãos alegaram, durante a investigação interna da PM a que foram submetidos, que não conheciam Andrade — e que foram acionados por conhecidos que pediram ajuda para socorrer um amigo. A explicação não convenceu a PM, que os excluiu de suas fileiros no último dia 4.
Os dois irmãos, entretanto, ainda tentam voltar à corporação. No último dia 18, eles entraram com um pedido de reconsideração da decisão que os excluiu da corporação, alegando que não há prova que associe os irmãos a Rogério Andrade. O documento ainda não foi avaliado pelo secretário da PM.
A sequência da conversa entre Pinheiro e Araújo também trouxe à tona a atuação de outro PM no bando de Andrade: o subtenente Marcos Araújo de Souza, irmão do chefe da segurança do bicheiro. Araújo menciona Marcos — que segue na ativa e, hoje, é lotado no 4º BPM (São Cristóvão) — depois que Pinheiro começou a falar do irmão. “Meu irmão tá ali porque eu tô aqui. Você sabe que a hora se eu sair daqui, meu irmão quebra no dia seguinte, quebra rápido. Entendeu?”, diz Araújo. Não fica clara a função que Marcos desempenha no bando.
Procurada, a assessoria de comunicação da PM não respondeu.
Fonte: Fonte: Jornal Extra