Como o Estado permitiu o roubo dos aposentados e o que está sendo feito para devolver o que foi levado
Por Bernardo Ariston
Durante anos, um esquema silencioso, legalizado e bilionário corroeu os recursos da Previdência Social, atingindo diretamente milhões de aposentados e pensionistas brasileiros. Estima-se que mais de R$ 6,3 bilhões tenham sido descontados indevidamente dos benefícios pagos pelo INSS, por meio de autorizações forjadas, convênios suspeitos e ausência de controle efetivo sobre a folha de pagamento. O golpe não veio de fora, ele foi construído por dentro do Estado, com amparo legal, assinatura de servidores públicos e conivência institucional.
A estrutura teve início em 2019, com a edição da Medida Provisória 871, posteriormente convertida em lei, criando os chamados Acordos de Cooperação Técnica (ACTs). Esses convênios permitiram que entidades sindicais e associativas obtivessem acesso direto à folha de pagamentos do INSS, com autorização para aplicar descontos diretamente nos benefícios dos segurados. Na teoria, seria necessário o consentimento formal do beneficiário. Na prática, adotou-se a chamada “autorização presumida”, mecanismo que abriu margem para fraudes sistemáticas.
Ao longo dos anos, o modelo se consolidou. Com o avanço da digitalização e a fragilidade dos sistemas de checagem, milhões de aposentados passaram a ter valores descontados sem saber exatamente por quê. Biometrias falsas, cadastros paralelos, uso de call centers e sistemas externos ao INSS permitiram que entidades operassem à margem da supervisão oficial. As queixas se acumularam em canais de atendimento e órgãos de defesa do consumidor, porém, mesmo assim, nenhuma medida efetiva foi tomada para corrigir o modelo nos anos seguintes.
Entre 2020 e 2022, diversos alertas da Controladoria-Geral da União (CGU) e de órgãos técnicos da Previdência foram emitidos. Os alertas apontavam a fragilidade dos convênios, a ausência de mecanismos de validação e a dificuldade de rastrear as autorizações individuais, no entanto, foram ignorados. A engrenagem continuou girando, beneficiando financeiramente entidades e operadores que, até hoje, seguem sob apuração.
Com a posse do novo governo, em 2023, havia expectativa de reformulação do sistema. No entanto, a Medida Provisória 1.177, ao ampliar a margem do crédito consignado, manteve os convênios herdados. Uma portaria posterior chegou a formalizar o uso de sistemas próprios de coleta de autorização pelas entidades. Durante grande parte de 2023 a estrutura fraudulenta seguiu ativa, sem fiscalização plena e com novos cadastros sendo processados.
Foi apenas em setembro de 2024 que a CGU, após concluir uma auditoria abrangente, emitiu um relatório contundente, revelando a dimensão do problema: mais de 4 milhões de beneficiários atingidos por descontos sem respaldo legal ou formal, centenas de entidades conveniadas em situação irregular e a completa ausência de controle por parte do INSS. O relatório classificou o caso como uma “falha sistêmica com impacto fiscal e social significativo”.
Diante da gravidade, o governo federal adotou uma série de medidas. O então ministro da Previdência foi afastado, os convênios com entidades suspeitas foram suspensos, e uma força-tarefa foi montada para revisar todos os descontos ativos e o presidente da República anunciou que o Estado irá devolver os valores indevidamente descontados aos beneficiários, com recursos do Tesouro Nacional. A devolução será feita diretamente aos lesados, com correção monetária, e precedida de um pente-fino rigoroso em toda a base de dados.
A medida, inédita, representa um gesto claro de responsabilização e compromisso com a reparação, mas não veio sem resistência. No Congresso Nacional, setores da oposição tentam barrar o projeto de devolução, alegando riscos fiscais e contestando o modelo adotado. Curiosamente, muitos desses parlamentares apoiaram as medidas que originaram os ACTs no passado — e agora tentam impedir que o Estado corrija os próprios erros. A manobra tem um nome: cinismo legislativo, a oposição não se preocupa em corrigir os problemas, apenas se preocupa em politizar essas questões para não sair da disputa eleitoral.
O que está em jogo não é apenas a devolução de recursos, mas a credibilidade da Previdência Social e do próprio Estado brasileiro. O escândalo do INSS mostra como brechas legais, omissão institucional e interesses particulares podem se combinar para criar um sistema de extração financeira silenciosa e cruel, contra a população mais vulnerável. A fraude não se sustentou no descontrole, mas sim na permissividade. Foi autorizada por medidas provisórias, ignorada por gestores e consolidada por conveniências políticas.
Mais do que identificar culpados pontuais, o país precisa entender a lógica estrutural desse tipo de golpe. O ladrão, neste caso, não é uma figura individual, é uma engrenagem feita de normas frouxas, contratos mal fiscalizados, órgãos que não apuram e lideranças que se omitem, contudo, há uma diferença entre os que permitiram que isso acontecesse e os que agora tentam consertar.
A devolução dos valores é apenas o primeiro passo, um passo histórico. Pela primeira vez, o Estado brasileiro reconhece formalmente que houve falha sistêmica, assume a responsabilidade e se compromete publicamente a ressarcir diretamente os cidadãos prejudicados. A resposta do presidente da República foi firme: afastou o comando da Previdência, determinou uma auditoria interna ampla e criou um plano emergencial de devolução com recursos do Tesouro Nacional. Mais do que um gesto de reparação, é um marco simbólico de que a democracia não pode se calar diante da injustiça. Entretanto, o país não pode parar na correção, é preciso avançar com medidas estruturais. A implantação de um sistema anticorrupção robusto e permanente na Previdência Social é indispensável e isso envolve modernizar os controles, exigir validação biométrica obrigatória para qualquer desconto em folha, proibir convênios sem rastreabilidade plena e criar um canal público de consulta em tempo real para todo beneficiário. Transparência e rastreabilidade devem ser princípios inegociáveis. O Brasil não pode mais aceitar que fraudes dessa magnitude se escondam sob a aparência da legalidade. A sociedade precisa exigir, com urgência, que o Estado deixe de ser cúmplice da desinformação e da omissão e atue como defensor ativo do cidadão, especialmente dos mais vulneráveis. Transformar esse escândalo em ponto de virada será o verdadeiro teste da nossa capacidade institucional de aprender com o erro e agir com coragem.
Por Bernardo Ariston
Jornal de Sábado