Armas desviadas da PM abastecem traficantes, milicianos e assaltantes


Em julho de 2017, durante uma inspeção na reserva de material bélico do 5º BPM (Praça da Harmonia), no Centro do Rio, um tenente descobriu que 762 armas — 753 revólveres calibre .38 e nove submetralhadoras — tinham desaparecido. Apesar de um Inquérito Policial Militar (IPM) ter sido aberto para investigar o desvio, até hoje não se sabe como as armas saíram de lá. No entanto, a partir de dados da Polícia Civil sobre apreensões de armamento obtidos por Lei de Acesso à Informação, o EXTRA descobriu que pelo menos parte desse arsenal abasteceu o crime: desde 2016, 34 revólveres e uma submetralhadora desviados do paiol da PM foram apreendidos nas mãos de traficantes, milicianos e assaltantes.

O levantamento foi feito a partir da comparação dos números de série dos revólveres e submetralhadoras extraviados — que constam no relatório do IPM — com números de série, marcas e modelos da lista de armas encontradas por agentes de segurança e levadas a delegacias. O número de armas da reserva de material bélico do batalhão que foram parar nas mãos de criminosos pode ser maior. Além das 35 identificadas pelo GLOBO, o cruzamento encontrou mais sete revólveres calibre .38 de propriedade da PM na lista de armas apreendidas em ocorrências. Mas como a numeração deles consta como raspada, não foi possível constatar se saíram do 5º BPM.

Apreensões em 13 cidades

A localização das apreensões das 35 armas revela que elas se espalharam pelo estado: os revólveres e a submetralhadora foram apreendidos em 13 cidades diferentes, na Região Metropolitana, na Costa Verde, no Sul Fluminense e na Região dos Lagos. O maior número de apreensões foi registrado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (nove no total). Numa dessas apreensões, em 27 de janeiro de 2017, no bairro de Campos Elíseos, um dos PMs responsáveis pelo encontro do revólver chegou a afirmar em depoimento na delegacia que “na mesma região, já haviam sido apreendidas quatro armas da PM antes dessa ocorrência”. Na ocasião, a arma foi apreendida, durante patrulhamento de rotina, com um traficante que fugiu para dentro de um matagal ao se deparar com os policiais.

Em 2016, a DAS encontrou um revólver da PM no cativeiro de uma jovem sequestrada
Em 2016, a DAS encontrou um revólver da PM no cativeiro de uma jovem sequestrada Foto: Fábio Rossi

Ao todo, 14 das 35 armas — ou 40% das identificadas no cruzamento de dados — foram parar nas mãos do tráfico de drogas. A única submetralhadora identificada no levantamento é uma delas: ela foi achada em 13 de novembro de 2018 na residência de um casal de traficantes no bairro de Vila Metrópole, em São João de Meriti, também na Baixada. Lane Necy Martins e Luciano de Araújo da Silva, apontados como gerentes do tráfico nas favelas Guarani e Vila Ruth, foram presos após policiais civis encontrarem a arma na residência do casal.

Sete das armas foram encontradas com ladrões durante roubos de carga, de carro e em um estabelecimento comercial, cinco foram apreendidas com pessoas autuadas por porte ou posse ilegal de armas de fogo e outras três foram achadas sem que houvesse a prisão de criminosos — num dos casos, a arma foi localizada num carro roubado. Cinco das armas foram usadas em tiroteios contra a própria polícia. Os confrontos aconteceram em Itaboraí, Duque de Caxias e na capital, e três das ocorrências culminaram na morte de criminosos.

Num desses casos, na madrugada de 15 de novembro de 2016 — antes mesmo da descoberta do desfalque no paiol —, três homens que estavam num carro roubado chamaram a atenção de uma patrulha da PM na Avenida Brasil, altura de Guadalupe. Houve perseguição e tiroteio. O motorista perdeu o controle do veículo, que bateu no muro de uma igreja evangélica. Os três foram presos; as duas armas que eles usavam, os revólveres de números 402006 e 522274, pertenciam à PM.

O ratro das armas
O ratro das armas Foto: Arte

A milícia também teve acesso a uma das armas do batalhão — e a usou para atirar em policiais. O revólver de número 1672572 foi apreendido por agentes da Delegacia Antissequestro (DAS) ao libertarem uma jovem de 26 anos de um cativeiro em Saracuruna, Duque de Caxias, em 10 de outubro de 2016. A vítima havia sido sequestrada dois dias antes por milicianos que atuam na região e pediram resgate para liberá-la. Agentes da DAS que investigavam o caso marcaram um encontro com os criminosos simulando a intenção de pagar a quantia e, no local combinado, prenderam dois deles, que entregaram a localização dos demais. No cativeiro, houve confronto e dois milicianos foram mortos — um deles, soldado do Exército. O revólver da PM foi uma das três armas apreendidas no local após o resgate.

Controle frágil

A investigação interna da Corregedoria da PM sobre o caso, mesmo não tendo chegado aos responsáveis pelo desvio, escancarou a fragilidade do controle do armamento da corporação. Ao todo, foram ouvidos 10 oficiais que ocuparam o posto de chefe da reserva de material bélico do 5º BPM entre 2011 e 2017. Os depoimentos revelaram que as armas que sumiram do paiol chegaram lá em 2011, transferidas do extinto 13º BPM, que ficava na Praça Tiradentes, e não eram usadas pelo efetivo da unidade — apesar de ainda funcionarem. No 5º BPM, os revólveres e submetralhadoras foram acondicionados em baús, fechados apenas com “fitas adesivas”, segundo mais de um relato. Desde a chegada das armas até a descoberta do sumiço, câmeras de segurança não foram instaladas dentro do paiol porque os chefes acreditavam que, por ficar localizada dentro de um batalhão da PM, a carga estava segura.

Por fim, os corregedores descobriram que os revólveres não eram retirados das caixas e contados periodicamente: por mais de dois anos, de dezembro de 2014 até março de 2017, quando houve a inspeção que descobriu o sumiço, não houve nenhum tipo de conferência no material. As caixas sequer foram abertas pelos cinco oficiais que chefiaram a reserva no período.

Em nota, a PM informou que o IPM indicou o cometimento de crimes por parte desses cinco chefes e de dois praças que também trabalhavam no local. A investigação foi encaminhada ao Ministério Público. Até hoje, entretanto, ninguém foi punido. Após o caso, segundo a PM, o paiol do 5º BPM passou a contar com “sistema de biometria para que policiais sejam autorizados a retirar armamento do local e monitoramento contínuo por câmeras”.



Fonte: Fonte: Jornal Extra