Ação da polícia contra receptadores de celulares roubados revela indícios de participação do tráfico e da milícia em rede criminosa


A Operação Cegueira Delibrada, da Polícia Civil, realizada nesta quinta-feira, que mirou os destinatários finais de celulares levados em dois grandes roubos de carga, teve como um dos principais objetivos, de acordo com os próprios investigadores, traçar a cadeia organizacional e de distribuição feita pelos criminosos. As investigações, por exemplo, já reveleram que, ao mesmo tempo em que o roubo milionário no ano passado da carga de cerca de 600 celulares no Aeroporto Internacional do Galeão, avaliados em R$ 3,2 milhões, foi realizado por uma quadrilha especializada do Complexo da Maré, que é financiada pelo tráfico, esses produtos apareceram, meses depois, na mão de comerciantes e consumidores baseados em bairros de áreas predominantemente comandadas por milícias.

— Essa quadrilha, do caso do Galeão, é oriunda do Complexo da Maré, que tem apoio do tráfico de drogas local, e usam a região como uma base operacional para planejamento dos crimes, execução dos crimes, e depois para a divisão do produto dos roubos praticados, guarda de armas etc. Tudo isso tem apoio do tráfico, que diversifica, aumenta sua renda para além das drogas. Depois disso, o produto é escoado, e é aí que vem o nosso combate de hoje, não só a esses roubadores e quem comprou lá na ponta, mas também quem revendeu. Investigamos tudo de ponta-a-ponta. E, num trabalho de inteligência, de rastreio dos celulares, verificamos que parte dessa carga roubada acabou parando em áreas de milícia — contou o diretor do Departamento-Geral de Polícia Especializada, o delegado Felipe Curi.

Lojas emitiam notas fiscais falsas

Os policiais da Delegacia de Roubos e Furtos de Carga (DRFC), responsável pela operação, ainda estão nas ruas. Ao todo, foram expedidos 26 mandados de busca e apreensão pela 27ª Vara Criminal. Até o momento, 17 pessoas foram detidas e levadas à sede da especializada, na Cidade da Polícia. Entre elas, a ex-vereadora Carminha Jerominho, filha do miliciano Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, e dois policiais militares, um do 9º BPM (Rocha Miranda) e outro do 22º BPM (Maré), que foram conduzidos pela Corregedoria da Polícia Militar para prestar esclarecimentos.

Três lojistas também foram presos por receptação qualificada e, no total, cerca de 250 aparelhos foram recuperados. Nestas lojas — uma no Centro, uma em Campo Grande e uma no Shopping Carioca — a polícia descobriu que os responsáveis pelos estabelecimentos, não só adquiriam ilegalmente esses celulares roubados, como também os revendiam usando notas fiscais falsas. Os três foram presos em flagrante e responderão por receptação qualificada, que não cabe fiança, e tem pena de 3 a 8 anos de reclusão.

— Com o prosseguimento das investigações, os três comerciantes ainda podem responder por associação criminosa, falsificação de documento e uso de documentos falsos — disse o delegado Vinícius Domingos, titular da DRFC, que comandou a ação. — Eles, de forma ostenstiva, falsificam documentos para dar uma aparência lícita a esses aparelhos. Num dos casos, uma das pessoas conduzidas se tornou até vítima de estlionato de uma dessas empresas.

Lojista preso e material apreendido em loja no Centro do Rio: notas fiscais falsas eram emitidas a clientes
Lojista preso e material apreendido em loja no Centro do Rio: notas fiscais falsas eram emitidas a clientes Foto: Divulgação

O delegado acrescenta que é essencial que o consumidor preste atenção aos cuidados mínimos na hora de comprar esses aparelhos celulares, e ressalta a responsabilidade de quem finge não saber a origem dos aparelhos, mesmo observando, por exemplo, valores muito abaixo dos praticados no mercado.

— Grande parte dos conduzidos vão responder por receptação porque não se atentaram ao fato de pedir nota fiscal, algo simples, mas muito importante para frear essa cadeia criminosa. A DRFC vem atuando contra os ladrões, contra os revendedores formais ou informais e contra o publico que deliberadamente não toma os devidos cuidados para adquirir esses aparelhos e retroalimentar essa cadeia criminosa. O destinatário final tem que ter a consciência de que não tendo o devido cuidado, ele está manchando sua mão com sangue dos policiais, dos motoristas e dos civis, que são vítimas dessas quadrilhas especializadas que atuam em rodovias estaduais e federais e, como bem dito, nesses centros de distribuição — disse Domingos.

Sobre o crime que originou a operação, no Galeão, que aconteceu no dia 7 de março do ano passado, há quase um ano, o delegado Vinícius Domingos destacou o quanto a ação mostra a sofisticação desses criminosos, e revelou que a polícia investiga a participação interna de funcionários em casos como este, que só poderiam ser executados de tal maneira por meio de informações privilegiadas. As investigações sobre o caso no aeroporto ainda estão em andamento.

— Esse crime demonstra mais uma vez que se tratam de quadrilhas especializadas. Ninguém chegaria ali num caminhão, numa área que é pra fazer carga e descarga, num galpão em que se sabia que havia uma grande quantidade de celulares, sem nenhuma informação. Eu não posso antecipar parte da investigação aqui, mas aquela operação contou com pelo menos quatro criminosos armados, que só não foram em maior quantidade porque certamente tinham informações privilegiadas. Mas essa mesma quadrilha atua em rodovias, no Arco Metropolitano e demais rodovias. A gente coíbe isso, mas eles atuam com oito, às vezes até 20 criminosos. Em alguns casos, até com carros caracterizados de empresa ou caminhões com o mesmo logotipo que os originais.

O rastreamento e localização dos aparelhos roubados em áreas de milícia, sobretudo na Zona Oeste, abriram os olhos dos investigadores, também, para a possibilidade de influência da milícia nessa rede criminosa.

— Sabemos que a cadeia de distribuição dos aparelhos passou para bairros como Campo Grande, Rio das Pedras, Curicica, outros sub-bairros de Jacarepaguá, Paciência e Itaguaí, que são bairros onde reconhecidamente há um controle de grupos milicianos, o que nos leva a crer que há uma participação, se não ao menos na encomenda, numa distribuição desses aparelhos, porque seria muita coincidência. A polícia apura isso — contou.

Filha de Jerominho indiciada por receptação

Nesta quinta-feira, um dos alvos da operação foi a ex-veradora Carminha Jerominho, filha de Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, apontado como líder de uma das maiores milícias do estado. Pela manhã, policiais bateram à sua porta, mas não a encontraram. Ela foi encontrada na casa de uma vizinha. Carminha é uma das 13 pessoas que foram identificadas com celulares da carga roubada no Galeão. Ela não foi detida em flagrante por não estar com os aparelhos, que ela disse ter comprado para o pai e para a mãe. No entanto, foi conduzida à delegacia para prestar esclarecimentos. Cerca de uma hora depois, o tio, Natalino José Guimarães, também acusado de liderar uma milícia ao lado do irmão, esteve na delegacia, onde entregou os dois celulares.

— Eles estão fazendo o trabalho deles, a gente não tem que questionar o trabalho da polícia, eu comprei de fato dois celulares numa loja, em Campo Grande, tá tudo direitinho no extrato do cartão, parcelado, a polícia bateu que são os aparelhos e a gente tem que vir aqui prestar depoimento — explicou Carminha na chegada à Cidade da Polícia.

Natalino, irmão de Jerominho, e a sobrinha, Carminha Jerominho, na Cidade da Polícia
Natalino, irmão de Jerominho, e a sobrinha, Carminha Jerominho, na Cidade da Polícia Foto: Fabiano Rocha / Agência O GLOBO

Pouco antes de entregar os celulares à polícia, Natalino disse estar tranquilo quanto à situação envolvendo Carminha.

— Minha sobrinha pagou o telefone direitinho e vai explicar aqui aos policiais, não tem nada demais, ninguém roubou nada, ninguém matou ninguém, ninguém fez nada — disse o ex-deputado estadual.

Apesar de Carminha afirmar ter ido à delegacia por livre e espontânea vontade, no entanto, a polícia nega essa versão.

— Ela foi conduzida porque ficou comprovado que ela detinha os celulares produtos de crime. Ela não foi autuada em flagrante por não estar com os aparelhos, mas, até para a avaliação da autoridade policial, ela tinha que prestar depoimento formal, porque até então a informação que a gente tinha tecnicamente é que essa pessoa adquiriu dois aparelhos, roubados, fruto desse roubo de mais de R$ 3 milhões de carga, e habilitou os telefones em seu nome, fato esse incontroverso, que ela mesma reconhece — esclareceu o delegado Vinícius Domingos. — Ela tem que vir prestar esclarecimentos na delegacia. É o mínimo.

Após a entrega dos dois celulares, Carminha vai responder pelo crime de receptação, crime este que prevê até 1 ano de cadeia, mas cabe fiança. Ela deve responder em liberdade, assim como os outros detidos.



Fonte: Fonte: Jornal Extra