Nossas bisavós não puderam realizar o sonho profissional. Nossas avós não tiveram o direito de viajar, conhecendo mundos. Nossas mães, por inúmeras questões, não puderam divorciar-se. Silenciadas e restritas a locais vigiados, controlados e predeterminados, carregaram a angústia das vidas não vividas.
Claro, sempre há aquelas que representam uma exceção. Porém, para falar sobre o tema, fiquemos com a maioria.
O mundo mudou. As dores permanecem. Algumas são trocadas por outras, com um nascedouro diferente. Mulheres podem votar. Podem divorciar-se. Podem viajar e trilhar novos caminhos. Podem correr riscos, restritos somente aos corpos livres.
A morte da brasileira de 26 anos, Juliana Marins, que caiu em um penhasco na trilha do Monte Rinjani, na Indonésia, virou notícia. O resgate, frustrado, foi acompanhado pelo Brasil, em tempo real.
No início, comoção nacional. A internet viralizou o assunto. Em meio às mensagens de alento e esperança, lá estavam os de sempre: os especialistas na vida alheia, os críticos, os juízes do tribunal popular, que dormem e acordam com o dedo em riste: “Bem-feito, quem mandou subir um vulcão? Se estivesse em casa, nada disso teria acontecido. Foi procurar a morte, e agora reclama. Mulher não deveria estar subindo um vulcão.”
Dúvida: onde deveriam então estarem as mulheres, para ficarem seguras?
No Brasil, três a cada dez brasileiras já foram vítimas de violência doméstica, de acordo com a 10ª pesquisa nacional de violência contra a mulher, feita pelo instituto Datasenado, em parceria com o observatório da mulher contra a violência (OMV). Essas agressões acontecem, em quase a totalidade, dentro de casa, no ceio do lar. No lugar apontado por muitos como seguro.
O feminicídio – matar uma mulher por ser mulher –indica um grave problema social no Brasil. De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 6 horas uma mulher foi assassinada em 2023. Em 2024, houve notificação de 2 mil assassinatos de mulheres, em razão do gênero. Os autores desse crime: pessoas próximas à vítima, como parceiros e familiares.
A casa ainda é um lugar perigoso para muitas mulheres. Basta verificar que a violência de gênero geralmente ocorre nesses ambientes.
Nas ruas, não é diferente. Quem já sentiu o sofrimento de um assédio em transporte público? Provavelmente, alguma mulher próxima a você. A caminho do trabalho, do supermercado ou um simples passeio com as amigas, situações de constrangimento são uma possibilidade real na vida feminina.
A cultura do estupro – comportamentos implícitos ou explícitos que relativizam a violência sexual contra mulheres – é um mantenedor de um ambiente hostil. Violência sexual por médicos anestesistas, toques indesejados no ambiente de trabalho, não aceitação de uma rejeição, estupro por parte de seus maridos são riscos que as mulheres correm, todos os dias, por estarem em ambientes, tido por muitos, como seguros.
Juliana resolveu ir para o mundo. O mundo não é um lugar seguro para nenhuma mulher. É hostil. No entanto, entre os riscos, escolheu, de forma corajosa, o que lhe fazia sorrir a alma.
Dançarina de pole dance, dançou a música da vida, sem muito se importar com as expectativas que a sociedade masculina exige e o ideal que construiu do que é ser mulher. Muitas pessoas dizem que a dor feminina é mi-mi-mi. Um exagero. Uma problematização aonde não há problema. No entanto, seja qual for a escolha, sempre haverá alguém para critica-la. Ser mulher não é atender expectativas alheias, é sobreviver a elas.
“Quando a morte chegar, que ela te encontre vivo”, diz um provérbio. Para ser vivo, é preciso coragem para seguir. A coragem e a liberdade de Juliana Marins não deveriam espantar o mundo, mas o oposto disso sim.
Jornal da Região