Iniciativa integra conjunto de ações que buscam fortalecer os povos originários da Bacia do Xingu e preservar os recursos hídricos do cerrado
Até 2018, as crianças que nasciam na Terra Indígena Pimentel Barbosa, localizada no interior de Mato Grosso, entre as bacias do Xingu e do Tocantins-Araguaia, corriam um risco nove vezes maior de morrer antes dos cinco anos de idade do que os outros brasileiros. A falta de saneamento básico e a contaminação da água disponível nos povoados geravam mortes evitáveis entre crianças dessa faixa etária em taxas comparáveis às registradas na África subsaariana, em países como Somália, Serra Leoa e Nigéria.
Mas um projeto-piloto de construção comunitária de instalações sanitárias transformou essa realidade e zerou a mortalidade infantil em Etenhiritipá, principal aldeia do local, com cerca de 600 habitantes. As chaves para o sucesso foram a mobilização do povo indígena, a educação inclusiva e o protagonismo feminino, além da participação de lideranças e organizações comunitárias, do apoio de pesquisadores e do Projeto Conexão Água, do Ministério Público Federal (MPF).
Desenvolvido entre 2018 e 2020, o projeto “Saúde Xavante: Direito Humano ao Saneamento na Prática” resultou em mais 1.500 metros de encanamento instalados, que levam água limpa de poços artesianos para 15 chuveiros e 12 pias e tanques construídos de forma coletiva pela população em áreas comuns da aldeia, casas e escolas. Também foram instaladas 32 pedras sanitárias e 32 banheiros. A iniciativa, de baixo custo, pode ser replicada nas outras 14 povoações do território indígena, com potencial para impactar três mil pessoas e salvar inúmeras vidas.
De acordo com o cacique Jurandir Siridiwe Xavante, um dos coordenadores do projeto, água e saneamento básico são os principais problemas das aldeias da Terra Indígena Pimentel Barbosa. As lideranças da comunidade já haviam tentado solucionar a questão pelos caminhos tradicionais, com demandas apresentadas ao Distrito Sanitário Especial Indígena, vinculado ao Ministério da Saúde, à Funai e a outros órgãos governamentais, sem sucesso . “Com o projeto, vimos que existem vários modelos de saneamento simples, que podem resolver o problema. Fizemos muita pesquisa para encontrar uma solução inédita para a nossa comunidade”, explica ele.
A ação envolveu a Associação Xavante de Etenhiritipá, o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo e o Centro de Estudos Avançados de Promoção Social e Ambiental (Projeto Saúde e Alegria). Contou ainda com o apoio do Projeto Conexão Água, do MPF, uma rede colaborativa de governança formada por grupos multidisciplinares, em que gestores públicos e privados atuam em conjunto para planejar, desenhar e implementar estratégias inovadoras para melhoria da qualidade e quantidade das águas no Brasil.
A articulação e mediação resolutiva promovida pelo Conexão Água, um projeto de custo zero para o MPF, foi essencial para a obtenção de financiamento junto à Embaixada do Canadá. Com recursos financeiros assegurados, sistema desenhado, materiais e projetos em mãos, os indígenas construíram coletivamente as instalações previstas. A comunidade participou de todo o processo e é responsável pela autogestão do sistema, o que reduziu de forma significativa os índices de doenças adquiridas pela água.
Fernanda Viegas Reichardt, coordenadora do projeto, pesquisadora vinculada à USP e colaboradora do Conexão Água, explica que uma etapa essencial foi a conscientização da população, para que todos passassem a utilizar as instalações recém-construídas e abandonassem de vez hábitos culturais de defecação ao ar livre, consolidados nos tempos em que o grupo era nômade.
“Desde 2018, quando concluímos o saneamento, não houve morte de criança na aldeia. Somos referência. Agora queremos levar o nosso modelo de saneamento para as outras aldeias”, cacique Jurandir Siridiwe Xavante
Microscópios foram levados para a aldeia, com o objetivo fazer análise e o monitoramento da qualidade da água junto com a comunidade. Os indígenas – principalmente as mulheres – participaram de oficinas, palestras e capacitações, conseguindo uma gama de informações que os ajudaram, inclusive, a atravessar a pandemia de covid-19. “Diante dos desafios complexos apresentados na execução do projeto, o envolvimento direto das mulheres foi o fator indispensável para o sucesso alcançado”, afirma a pesquisadora.
“Desde 2018, quando concluímos o saneamento, não houve morte de criança na aldeia”, conta o cacique Jurandir. “Somos referência. Agora queremos levar o nosso modelo de saneamento para as outras aldeias”. Para Fernanda, o projeto comprova a importância de envolver os povos tradicionais na busca por respostas para as questões que afligem as comunidades, contemplando a história, a cultura e os conhecimentos ancestrais de cada grupo.
“Grande parte das soluções para os problemas locais está no próprio local, com as pessoas. Por isso, é fundamental fazer um diálogo horizontal com os povos tradicionais, que guardam saberes e conhecimentos que só agora a ciência está começando a mapear”, explica a pesquisadora Fernanda Reichardt.
A ação de saneamento básico na aldeia de Etenhiritipá ajudou o Conexão Água a conquistar o selo Iniciativa Dacar no 9º Fórum Mundial da Água, no Senegal, em 2022. Além disso, agregada à ferramenta de monitoramento social de qualidade da Água Boa de Beber, levou o Conexão Água à apresentação oficial das iniciativas na Conferência da Organização das Nações Unidas sobre Águas, realizada em 2023 em Nova York.
Em outra frente de atuação, os diálogos promovidos pelo Conexão Água ajudaram a assegurar o reconhecimento, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do território ancestral Sõrepré (ou Tsõrepré), localizado também em Mato Grosso. Foram anos de pesquisa e articulação, e, com a inserção da área na Plataforma de Territórios Tradicionais – projeto coordenado pelo MPF, pela Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) e pelo Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) –, o sítio histórico foi finalmente certificado como bem arqueológico, o que abre caminho para a proteção do local sagrado e possibilita mais pesquisas sobre as origens desse povo indígena e sobre a história do Brasil.
As mulheres Xavante ainda receberam apoio para a construção de um protocolo de consulta prévia próprio. Prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a consulta prévia de povos tradicionais impactados por empreendimentos ou políticas públicas busca garantir a participação dessas comunidades nas decisões, em pé de igualdade com os demais cidadãos, respeitando sua identidade social e cultural, seus costumes, tradições e instituições.
Prevista na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a consulta prévia de povos tradicionais impactados por empreendimentos ou políticas públicas busca garantir a participação dessas comunidades nas decisões, em pé de igualdade com os demais cidadãos, respeitando sua identidade social e cultural, seus costumes, tradições e instituições.
No caso dos Xavante, o instrumento é especialmente importante, uma vez que estão em curso projetos de construção de pequenas centrais hidrelétricas (PCH) no Rio das Mortes. O curso d ‘água tem importância histórica e ambiental para o grupo, e o barramento do rio pode afetar a segurança alimentar dos indígenas, com redução da população de peixes e da oferta de caça. Outras obras de infraestrutura previstas para a região também podem afetar a segurança hídrica e climática.
Com o protocolo específico, as mulheres reafirmam que querem ser ouvidas nos seus próprios termos e que a perspectiva feminina deve ser considerada em todo o processo de licenciamento, implantação e execução dos empreendimentos. Mais do que garantir voz a elas, o empoderamento de gênero nas decisões ambientais e sociais preserva a riqueza dos costumes e os saberes dessa comunidade indígena, patrimônio de todo o povo brasileiro. “As mulheres guardam as tradições e asseguram a continuidade da cultura e do povo, cuja história foi por tanto tempo apagada e invisibilizada”, explica Fernanda.
A procuradora regional da República Sandra Kishi, coordenadora do Projeto Conexão Água, explica que normas nacionais e internacionais consideram o acesso à água como direito humano fundamental e determinam prioridade para o trabalho com comunidades tradicionais, indígenas ou vulneráveis.
“A meta da universalização do saneamento pressupõe a efetividade da justiça social e ambiental, de fato inclusiva, que garanta água segura para todos, começando por quem mais conserva a natureza. Esse cenário motivou o apoio do Conexão Água às ações desenvolvidas na aldeia”, Sandra Kishi, procuradora regional da República
Ao garantir visibilidade e empoderamento para o grupo indígena, as iniciativas pretendem incluir não apenas os Xavante, mas todas as comunidades tradicionais em planos de saneamento e políticas públicas de acesso à água de qualidade. Colaboram também para a conservação da biodiversidade e dos recursos hídricos do cerrado, bioma que é considerado o berço das águas do Brasil, o que está em sinergia com o objetivo final da rede colaborativa.
Saiba mais sobre a ferramenta de monitoramento Água Boa de Beber
Contagem regressiva – Até o dia 9 de novembro, véspera do início da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), em Belém, no Pará, serão publicadas 50 matérias sobre a atuação do Ministério Público Federal na proteção do meio ambiente, das populações mais vulneráveis e dos direitos humanos. Acompanhe a contagem regressiva diariamente, no nosso site!
*Reportagem: Comunicação/MPF/PGR
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