tragédia, lenda e devoção popular


Uma fotografia do filme Joema, 23º andar mostra uma silhueta que seria de um espírito
Reprodução

Uma fotografia do filme Joema, 23º andar mostra uma silhueta que seria de um espírito

Cinco décadas após o incêndio que chocou o Brasil, a tragédia do Edifício Joelma  reverbera ate hoje na memória coletiva dos paulistanos. Mais do que um marco de dor, o episódio deu origem a uma das lendas urbanas mais conhecidas do país: a das 13 almas do Joelma, que seriam vítimas não identificadas do fogo que, segundo relatos, se manifestam até hoje por meio de fenômenos sobrenaturais.

O caso remonta a 1º de fevereiro de 1974, quando um curto-circuito em um aparelho de ar-condicionado no 12º andar provocou um incêndio de grandes proporções no Joelma, o prédio localizado no centro de São Paulo. Em menos de 20 minutos, as chamas atingiram 18 dos 25 andares do prédio, deixando mais de 180 mortos e centenas de feridos.

Entre as vítimas, 13 corpos carbonizados foram encontrados dentro de um dos elevadores. Sem possibilidade de identificação, foram enterrados lado a lado, em um jazigo coletivo no Cemitério São Pedro, na Vila Alpina, zona leste da capital. Com o tempo, esse túmulo se tornou o centro de uma devoção popular marcada por relatos de aparições, rituais com água e supostos milagres.

Reportagem do Estadão com relatos dos Bombeiros de São Paulo
O Estado de São Paulo

Reportagem do Estadão com relatos dos Bombeiros de São Paulo

Funcionário relatou vozes e gritos no cemitério

O pesquisador de manifestações sobrenaturais Thiago de Souza, criador do canal “O Que Te Assombra”, explica ao iG que o mito em torno das 13 almas do Joelma surgiu a partir de um relato feito por um funcionário do cemitério poucos dias após o sepultamento coletivo.

Segundo ele, o vigia noturno relatou ter ouvido, durante a madrugada, vozes e gritos desesperados vindos da área onde os corpos foram enterrados.

“O silêncio quase ensurdecedor foi rompido. Vozes desesperadas se confundiam em um agonizante coro. Mas mesmo diante da unidade sonora, era possível identificar cada uma das vozes. Eram 13 vozes”,.

Edifício Joelma em chamas
Folhapress

Edifício Joelma em chamas

Ainda de acordo com o pesquisador, o funcionário, tomado pelo desespero, decidiu jogar um balde de água sobre as lápides.

O gesto teria silenciado as manifestações sonoras de forma imediata.

“Uma a uma, as vozes silenciavam como em um abençoado batismo feito pelo rescaldo”.

Os detalhes do suposto episódio se espalharam entre os funcionários do cemitério e, posteriormente, entre moradores da região.

Com o tempo, surgiram relatos de visitantes que também alegavam ouvir sons, sentir arrepios e presenciar fenômenos incomuns no local.

Túmulo coletivo virou capela e ponto de peregrinação

Com a repercussão, o jazigo coletivo das vítimas passou a ser visitado com frequência.

Fiéis começaram a deixar copos e garrafas de água sobre as lápides, em um gesto simbólico de alívio à sede de quem morreu entre chamas.

Segundo Thiago, essa prática foi incorporada à cultura popular como forma de devoção.

Túmulos dos 13 corpos desconhecidos do incêndio no Edifício Joelma
Reprodução Além da Imaginação

Túmulos dos 13 corpos desconhecidos do incêndio no Edifício Joelma

“Por terem saboreado o martírio das chamas do inferno, as 13 almas do Joelma foram santificadas pelo povo. Sacralizadas pela dor, ganharam culto e capela. O altar da dor virou motivo de procissão”, afirma ao iG .

Com o aumento das visitas e os relatos de graças alcançadas, uma capela foi construída sobre o túmulo coletivo.

Atualmente, o espaço abriga placas de agradecimento, oferendas, fotos e pedidos de oração. Às segundas-feiras, consideradas o “dia das almas”, o local costuma receber grande número de fiéis.

Túmulos dos 13 corpos desconhecidos do incêndio no Edifício Joelma
Reprodução Além da Imaginação

Túmulos dos 13 corpos desconhecidos do incêndio no Edifício Joelma

Apesar de não contar com reconhecimento oficial por parte da Igreja Católica, a devoção segue firme e mobiliza pessoas de várias regiões do país. Muitos atribuem aos 13 mortos curas, proteção e bênçãos, e seguem o ritual de visitar o cemitério e oferecer água como forma de agradecimento.

Relatos de assombração no prédio rebatizado

O Edifício Joelma foi reformado e reaberto anos depois com outro nome: Edifício Praça da Bandeira.

Embora o prédio hoje abrigue salas comerciais e funcione normalmente, ainda circulam relatos de aparições e fenômenos estranhos entre frequentadores e funcionários.

Há quem relate vozes nos corredores, luzes que se acendem sozinhas, ruídos inexplicáveis e sensações de mal-estar em determinados andares. Para alguns, são apenas coincidências. Para outros, indícios de que a tragédia deixou marcas além das visíveis.

Pessoas no topo do Edifício Joelma
pmsp

Pessoas no topo do Edifício Joelma

“Tudo era fogo e escuridão, como professa o Velho Testamento”, comenta Thiago de Souza. “É como se aquele local tivesse sido marcado por um sofrimento que ainda ecoa. E as manifestações, para quem estuda esses fenômenos, não surpreendem.”

Tragédia inspirou livros, filme e psicografia

A história das 13 almas do Joelma também ganhou espaço na cultura popular.

Um dos casos mais conhecidos é o da jovem Volquimar Carvalho dos Santos, uma das vítimas do incêndio. Segundo registros, sua mãe teria recebido cartas psicografadas por Chico Xavie r, que serviram de base para o livro Somos Seis, publicado em 1977.

A obra foi adaptada para o cinema no ano seguinte com o título “Joelma, 23º Andar”, protagonizado por Beth Goulart.

Durante as filmagens, membros da equipe relataram ocorrências inexplicáveis, como mudanças bruscas de temperatura e sons não identificados.

Edifício Joelma em chamas
Acervo – USP

Edifício Joelma em chamas

Nas últimas décadas, o caso também foi abordado em documentários, reportagens investigativas, canais de mistério no YouTube e produções voltadas ao terror.

A expressão “as 13 almas do Joelma” se consolidou como símbolo de uma das mais intensas tragédias urbanas do país, e, ao mesmo tempo, de um fenômeno religioso espontâneo, nascido nas ruas.

Fé popular transforma vítimas anônimas em símbolos de esperança
A lenda das 13 almas do Joelma evidencia como o sofrimento coletivo pode se transformar em objeto de culto. São vítimas sem nome, mas que, na visão popular, passaram a exercer um papel sagrado e protetor, especialmente para os mais pobres e desassistidos.

Para Thiago de Souza, a devoção é uma forma de resistência simbólica à dor e ao esquecimento.

“Quem agradece as graças alcançadas, retribui com copos de água o líquido que lhes faltou no derradeiro momento de suas vidas”, resume.

Enquanto o tempo avança, o mistério permanece. O prédio segue ativo, o cemitério continua recebendo fiéis, e o número 13, envolto em superstição, segue sendo invocado por quem acredita que nem mesmo a morte é capaz de calar certas histórias.



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