
Quando a punição tem fio: Tornozeleira é justiça ou falha do sistema?
O Brasil assistiu, nas últimas semanas, à repercussão do episódio em que o ex-presidente Jair Bolsonaro teria tentado romper a tornozeleira eletrônica com um equipamento de ferro de solda. O gesto, mais do que um ato individual, reacendeu uma discussão que revela contradições profundas no sistema penal brasileiro: afinal, o monitoramento eletrônico é instrumento de Justiça ou apenas mais um sintoma das desigualdades que atravessam o país?
É importante esclarecer que o debate não se limita à conduta do ex-presidente. O centro da questão está em compreender quem tem acesso ao uso da tornozeleira, em que circunstâncias e o que essa política penal representa para diferentes grupos sociais.
A tornozeleira eletrônica é um mecanismo legítimo previsto em lei, utilizado em situações específicas. Um exemplo é a saída temporária, benefício concedido às pessoas já condenadas que cumprem requisitos legais, como bom comportamento e determinado tempo de pena. Nesses casos, o monitoramento serve para assegurar que o apenado cumpra regras como recolher-se ao endereço indicado no período estabelecido de saída temporária.
Outra situação em que a tornozeleira é aplicada ocorre na prisão domiciliar, uma modalidade de cumprimento de pena ou medida cautelar que restringe a liberdade de locomoção, ainda que dentro da própria residência. O equipamento funciona, aqui, como uma extensão eletrônica da vigilância estatal, garantindo que o indivíduo permaneça no local autorizado e cumpra as determinações judiciais. Em ambas as hipóteses, a responsabilidade é clara: quem utiliza a tornozeleira deve preservar o equipamento. Danificá-lo, removê-lo ou tentar violá-lo pode acarretar o retorno ao sistema prisional ou a revogação do benefício. A lógica jurídica é simples: romper a tornozeleira é romper o pacto de confiança firmado com o Estado.
No entanto, é justamente ao observarmos quem consegue usufruir desse benefício que o debate se aprofunda. O Estado brasileiro não dispõe de tornozeleiras eletrônicas suficientes para atender a demanda da população carcerária. E, como ocorre em tantos outros âmbitos, a escassez não atinge a todos da mesma forma. Presos pobres, pretos e periféricos que compõem a maioria esmagadora do sistema prisional brasileiro frequentemente permanecem encarcerados, mesmo quando a lei permitiria que cumprissem a pena ou medida cautelar sob monitoramento. Já réus com maior visibilidade, recursos financeiros e acesso a defesa jurídica estruturada tendem a acessar esses mecanismos com mais facilidade.
Esse cenário expõe a face mais conhecida, mas menos enfrentada, do sistema penal: sua seletividade estrutural. Em um dos países que mais encarceram no mundo, o uso desigual da tornozeleira mostra que a Justiça, muitas vezes, atua com pesos diferentes a depender da cor, do território e da condição econômica de quem está diante dela. Por isso, a discussão necessária não é se a tornozeleira eletrônica representa “direito” ou “impunidade”. A verdadeira pergunta que deveríamos fazer é outra: o monitoramento eletrônico está sendo aplicado de forma justa, igualitária e eficiente, ou estamos apenas reproduzindo a velha lógica de punição seletiva no Brasil?
Enquanto o país não enfrentar a falta de estrutura do sistema penal, a desigualdade no acesso aos direitos e a estigmatização dos mesmos corpos de sempre, continuaremos discutindo tornozeleiras sem discutir Justiça. E, sem Justiça, o fio da punição continuará sendo mais pesado para uns do que para outros.
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