Quando uma portaria vale mais do que uma decisão do STF


*Por Luciana Lóssio

Luciana Lóssio é ex-ministra do TSE
Nelson Jr./ASICS/TSE

Luciana Lóssio é ex-ministra do TSE

Em uma reviravolta que desafia a lógica jurídica e a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministério da Educação (MEC), por meio da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (SERES), publicou a Portaria n.º 531/2023 no mesmo dia da publicação da segunda Medida Cautelar concedida pelo Ministro Gilmar Mendes no âmbito da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n.º 81. Essa portaria, ao estabelecer novos critérios para a autorização de cursos de Medicina, parece ter criado um padrão decisório que contradiz diretamente os fundamentos estabelecidos pelo STF, trazendo à tona uma discussão urgente sobre o respeito às decisões da Suprema Corte no Brasil.

A ADC 81 tratou da constitucionalidade do art. 3º da Lei n.º 12.871/2013, conhecida como Lei do Mais Médicos, que regulamenta a autorização de novos cursos de Medicina no país. O Supremo, ao julgar a medida cautelar nessa ação, determinou que a análise de pedidos de abertura de cursos de Medicina deve considerar a “região de saúde” e não apenas o município sede, conforme definido no Decreto nº 7.508/2011. O julgamento, que transitou em julgado e foi referendado pelo Plenário, estabeleceu critérios para garantir que as decisões administrativas do MEC fossem baseadas na realidade regional de saúde e no interesse social, assegurando o devido processo legal.

No entanto, o que se viu foi uma manobra normativa que coloca em xeque a segurança jurídica. A Portaria n.º 531/2023, publicada no mesmo dia em que a segunda Medida Cautelar foi integralizada, revogou a Portaria SERES/MEC n.º 397/2023 e trouxe novos critérios e limitações não previstos na decisão do STF, além de alterar o padrão decisório vigente naquele momento, que estava previsto na Portaria SERES/MEC nº 20/2017, combinada com a própria Lei do Mais Médicos (Lei n.º 12.871/2013). Entre essas inovações, está a imposição de limites numéricos para a autorização de novos cursos de Medicina e para o aumento de vagas, determinando, por exemplo, que o número de vagas para novos cursos seja limitado a 60, independentemente da necessidade regional, e que o aumento de vagas em cursos já existentes seja restrito a 30% das vagas previamente autorizadas.

Esses critérios foram estabelecidos sob a justificativa de conformidade com a decisão do STF, mas, na prática, introduzem restrições que não encontram amparo na Lei do Mais Médicos (Lei n.º 12.871/2013) e que jamais foram utilizadas em processos de autorização de cursos de Medicina no país. O Supremo, ao julgar a ADC 81, foi claro ao determinar que as decisões sobre a autorização de cursos devem ser feitas com base nas características particulares de cada caso concreto, garantindo o contraditório e a razoável duração do processo. A Portaria n.º 531/2023, ao criar critérios rígidos e generalistas, ignorou essa orientação.

É importante lembrar que a edição de normas infralegais não pode contrariar decisões judiciais, especialmente quando se trata de uma decisão do STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro. A Portaria n.º 531/2023, ao desconsiderar os parâmetros estabelecidos pelo STF, extrapola os limites da discricionariedade administrativa e desafia o princípio da separação dos poderes. Esse ato normativo, ao invés de regulamentar de forma a respeitar a decisão judicial, cria subterfúgios que impossibilitam o cumprimento dos comandos constitucionais já estabelecidos.

As críticas da comunidade jurídica e educacional não tardaram. Diversas entidades representativas do ensino superior, como a Associação Brasileira de Mantenedoras das Faculdades (ABRAFI), que têm se manifestado contra o novo padrão decisório imposto pela Portaria n.º 531/2023, denunciando a tentativa de burla à decisão do STF. Essas entidades sustentam que o MEC, ao introduzir novos critérios e limitações, alterando os que estavam vigentes, desrespeita o direito das instituições de ensino de comprovar o interesse social no bojo do processo administrativo, como assegurado pelo STF.

A insistência em estabelecer um novo padrão decisório que contraria diretamente o entendimento consolidado pelo STF coloca em risco a segurança jurídica, um princípio fundamental para a estabilidade das relações entre o Estado e os particulares. Instituições de ensino que já haviam superado a fase inicial de análise documental, investido vultosos valores em infraestrutura e contratação de professores, passado por processo de avaliação do INEP/MEC com conceitos satisfatórios, obtido parecer favorável de autorização do Conselho Nacional de Saúde e que contavam com decisões favoráveis para prosseguir com a implantação de novos cursos ou aumento de vagas, agora enfrentam um cenário de incerteza e potencial prejuízo financeiro. A aplicação retroativa de critérios inéditos, que restringem a possibilidade de autorização de novos cursos, é um retrocesso que viola princípios básicos do Estado Democrático de Direito.

Além disso, a Portaria n.º 531/2023 desafia o próprio conceito de “região de saúde” estabelecido na legislação e defendido pelo STF. Ao restringir a análise à capacidade de oferta de serviços no município, a portaria reduz a abrangência das políticas de saúde pública e desconsidera a importância de uma abordagem regionalizada para a formação de novos profissionais de saúde.

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A publicação da Portaria n.º 531/2023 evidencia um preocupante descompasso entre a administração pública e o Poder Judiciário. É fundamental que o Ministério da Educação, ao regulamentar a autorização de novos cursos de Medicina, respeite o que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, especialmente quando a decisão visa garantir a justiça e a segurança jurídica para as instituições de ensino e para a sociedade em geral. A manutenção de atos normativos que contradizem decisões da Suprema Corte compromete a integridade do Estado de Direito e a própria confiança na Administração Pública.

O caso da Portaria n.º 531/2023 é um alerta sobre os limites do poder regulamentar e a necessidade de assegurar que as decisões judiciais sejam efetivamente cumpridas. Quando um ato normativo vale mais do que uma decisão do STF, o que está em jogo é a própria ordem constitucional e a confiança na justiça como pilar fundamental da democracia.

*Luciana Lóssio é Advogada, Doutora em Direito e Ex-Ministra do TSE

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