por que os homens se acham bonitos e as mulheres se veem feias?


Saúde e nutrição com Clayton Camargos: por que os homens se acham bonitos e as mulheres se veem feias?
Clayton Camargos

Saúde e nutrição com Clayton Camargos: por que os homens se acham bonitos e as mulheres se veem feias?

Imagine-se diante do espelho. Não qualquer espelho, mas um que reflete não o seu rosto, e sim o que esperam de você. Você respira, ajeita o cabelo, sorri, mas a imagem devolvida não sorri de volta. A sensação é de inadequação. A percepção de beleza é um labirinto cheio de espelhos partidos: cada reflexão acerta uma face, esconde outra, e quase nunca revela a verdade total.

Pois bem: uma pesquisa encomendada pela edição brasileira da revista de moda, cultura e lifestyle masculina Gentlemen’s Quarterly (GQ) ao Instituto Ideia, realizada em maio de 2022, revelou que 47% dos homens se achavam bonitos, 44% na média” e apenas 3% se consideravam feios.

Em contraste, pouco mais de duas décadas atrás a Dove conduziu a pesquisa The Truth About Real Beauty, entrevistando cerca de 32.000 mulheres em 10 países. Dessas, somente 2% escolheram o termo beautiful ”, bela, para descrever sua aparência. Posteriormente, conforme citado na página da campanha, esse número subiu para 4%. Trata-se de um refinamento dos dados de 2004, sem atualizações mais recentes

De todo modo, são retratos de épocas distintas que, ao se cruzarem, revelam um abismo não apenas de gênero. Denunciam o colapso emocional de uma sociedade que ensinou os homens a se aceitarem e as mulheres a se destruírem.

Por que os homens se sentem confortáveis nos próprios corpos, e as mulheres em guerra crônica com as suas imagens? A resposta não está na estética. Está no poder. Vamos explorar essa intricada tapeçaria…

Comecemos com Nancy Etcoff, neuropsicóloga da Harvard Medical School, cujo livro Survival of the Prettiest (1999) enfatiza que nossa atração está fundada em sinais de saúde e simetria; artefatos naturais de fertilidade e viabilidade reprodutiva, isto é, atalhos ancestrais da seleção sexual.

O encanto por rostos jovens e saudáveis é quase uma compulsão biológica. O que muitas vezes beneficia nossos genes, no entanto, cobra o preço da ansiedade estética.

Etcoff adverte que a cultura sequestrou esse instinto, tornando-o hiper-real, artificial e cruel. Quer dizer, força evolutiva e exploração socioeconômica são coisas distintas.

A beleza deixou de ser indicativa de saúde para arbitrar uma moeda dogmática cunhada pela lógica da performance social.

No Mito da Beleza (1990), Naomi Wolf, escritora, jornalista e ativista feminista estadunidense, aponta o raciocínio perverso que atravessa o corpo feminino: desde cedo, a mulher é treinada para se vigiar, se moldar e, sobretudo, se duvidar.

O espelho se torna um tribunal, onde me sinto feia ” é uma sentença recorrente, alimentada por uma cultura que exige beleza, juventude e magreza, mas que a pune caso reivindique esses desejos publicamente.

Em suas obras, como A Bela Velhice (2013), a antropóloga Mirian Goldenberg argumenta o apartheid moral contra os corpos femininos: envelhecer, engordar, querer parecer bonita ou simplesmente existir fora dos padrões é tratado como falência.

Já o homem passa por tudo isso e ainda sai ileso, envelhece bem ”, dizem. Essa liberdade é, também, um privilégio estético. Como se carregar o tempo no rosto fosse, para ele, uma medalha.

À mulher, resta o sacrifício: ser bela sem parecer vaidosa, lutar por aceitação sem admitir o combate, carregar o tempo no corpo como culpa, entretanto, jamais como troféu (não para ela, mas sim para os homens).

Enquanto mulheres penam para parecerem jovens, homens continuam dizendo que estão bem para a idade ”. Que idade é essa? A que permite a ele se aceitar e condena a ela à reconstrução perpétua?

Há ainda o peso simbólico do contraste bíblico: Eva e a maçã. A mulher condenada a carregar o pecado original e a punição eterna da aparência; ela, adiante transformada em Maria Madalena, tem o seu corpo apedrejado por uma histeria sacro-profana, inclusive, por outras mulheres.

O homem, por sua vez, perdoado pela coroa de espinhos, edificado à imagem do Criador. Uma parábola que alimenta a cultura do pecado estético feminino: enquanto ele, livre do superego público, caminha impune, ela permanece nua, castigada, sempre em estado provisório.

Homens estão socialmente habilitados a homologar imperfeições. Anabolizantes são tabus, mas feiura, não. A frustração estética masculina é dirigida ao ordinário: barba, careca, barriguinha de chope” e raramente atinge a subjetividade.

Há todo um pacto cultural. Desde a infância meninos são poupados do escrutínio estético e recebem mensagens de poder, competência, merecimento. Sua masculinidade é reforçada pelo corpo funcional, pelos feitos, não pela aparência.

As mulheres encaram uma censura estética permanente. Com efeito: em um mundo dominado pelo excesso de peso a magreza turbina o valor social, e poucas se consideram belas. É um abismo emocional inaugurado na função social do corpo e no gênero. Eis o porquê desses 3% versus 4%. A mulher vive a permanência do pesadelo da goleada alemã contra o Brasil, seu 7×1 particular.

O corpo feminino desse início de século é um duelo entre a biologia e o Photoshop.

Dito isso, por que mulheres acreditam ser feias? Porque aprenderam a medir valor no espelho, a sonegar méritos internos e a interpretar rugas como dívidas supostamente próprias.

É a conhecida autocrítica em excesso”. O estudo Perceptions of Beauty Standards Scale(2025) desenvolveu uma ferramenta para mensurar a pressão social estética: concluiu que 78 % das mulheres relatam ansiedade corporal causada por padrões irreais.

Uma etnografia em clínicas estéticas no Rio de Janeiro revelou que esses espaços são mais que lugares de transformação corporal: são ambientes de regulação social, onde o corpo feminino é produtor de pertencimento, exclusão, identidade e poder simbólico. Ao mapear essas dinâmicas, a autora mostra como intervenções estéticas refletem e reforçam estruturas de gênero e desigualdade no Brasil contemporâneo.

Na mesma ordem, jovens mulheres brasileiras comparadas às francesas, percebem a aparência como algo a ser controlado, monitorado, retocado. O Human Development Report da United Nations Development Programme (HDR/UNDP, 2023/2024) observa correlação entre autoestima e indicadores de desenvolvimento humano: países com altos índices de igualdade de gênero apresentam maior satisfação corporal feminina.

E por que os homens se acham mais bonitos? Porque são menos cobrados. Um homem comum “é ok”. Uma mulher comum “é descuidada”.

Embora os padrões mudem com o tempo, da robustez renascentista à magreza musculosa ultra HD da contemporaneidade, a pressão estética persiste. O corpo que não se encaixa nesse modelo: seja por gênero, idade, cor, forma ou ancestralidade é tratado como falha a ser corrigida, confirmando que a ditadura da beleza apenas troca de máscaras, mantendo intacta sua lógica excludente e normativa.

O efeito paralaxe” (quando o que parece atraente de longe se desmancha de perto, por mudança no ponto de vista), adaptado da física à estética contemporânea, expressa com precisão o drama moderno da autoimagem. Ao tentar congelar juventude apagamos personalidades que pulsam na imperfeição; essa ilusão de profundidade, que parece bela à distância, mas se desfaz de perto, nutre um mercado que anaboliza com o medo do tempo e nos empurra para um biohacking estético.

Nos constituímos também pela imagem no espelho. Como antecipou Jacques Lacan: o sujeito nasce no reflexo, mas o reflexo nunca é neutro. Hoje, esse espelho é o celular. E o eu, fragmentado por filtros, só se reconhece depois da edição.

O “corpo-cárcere higienista” penaliza o envelhecimento natural, colonizando a vida inteira com pânico do tempo. A beleza é contrato social escravizante; a corporeidade é lugar de poder, sim, mas não de escravidão.

Jean-Paul Sartre discute que a existência precede a essência”. Somos livres para sermos quem quisermos. Mas estamos, cada vez mais, presos em corpos que não nos pertencem. A vaidade, materializada pela obsessão com a beleza, é um dos mais poderosos territórios de batalha da libertação humana.

A beleza genuína é presença. E presença não se edita. Presença se sente. Afinal, a verdadeira beleza não é aquela que se compra. É a que se vive. E viver, meus caros, é a mais radical forma de beleza que já inventaram.

Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para [email protected] e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.

*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.

CRN-1 2970.

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