Osso infantil de 850 mil anos revela canibalismo antigo


Vértebra infantil de 850 mil anos revela canibalismo antigo
Maria D. Guillén/IPHES

Vértebra infantil de 850 mil anos revela canibalismo antigo

Pesquisadores encontraram na Serra de Atapuerca, no norte da Espanha, uma vértebra cervical humana com aproximadamente 850 mil anos que pode reescrever o entendimento sobre os hábitos dos primeiros humanos europeus. O osso foi localizado na caverna Gran Dolina e, após análises detalhadas, revelou pertencer a uma criança entre 2 e 4 anos de idade, apresentando marcas de corte que sugerem uma decapitação intencional.

A descoberta foi divulgada pelo Instituto Catalão de Paleoecologia Humana e Evolução Social (IPHES) na última quinta-feira (24). Segundo os especialistas, a precisão das incisões sugere que a criança foi desmembrada de maneira sistemática, da mesma forma que os Homo antecessor processavam suas presas para consumo.

“A vértebra apresenta cortes em pontos anatômicos estratégicos, indicando um ato deliberado de desarticulação da cabeça”, afirmou Palmira Saladié, codiretora das escavações.

Prática recorrente

O achado integra um conjunto de dez fragmentos ósseos humanos escavados neste ano no nível TD6 do sítio arqueológico, todos atribuídos ao Homo antecessor, uma espécie extinta considerada candidata a ancestral comum do Homo sapiens e do Homo neanderthalensis. Muitos desses ossos exibem sinais de descarnação e fraturas provocadas intencionalmente, semelhantes às observadas em animais abatidos para alimentação.

Momento da descoberta de um dente do Homo antecessor
Maria D. Guillén/IPHES

Momento da descoberta de um dente do Homo antecessor

Segundo Saladié, o comportamento canibal já havia sido identificado no mesmo local há quase três décadas, com a descoberta do primeiro registro conhecido de canibalismo humano. O que surpreende agora é a repetição sistemática dessa prática ao longo do tempo.

“O tratamento dos corpos não era um evento isolado, mas uma conduta habitual”, explica.

Consumo de carne humana e disputa por território

A análise dos fósseis reforça a hipótese de que o Homo antecessor incluía carne humana na dieta, não apenas por necessidade, mas possivelmente como forma de controle territorial ou ritual. Estima-se que cerca de 30% dos ossos encontrados em Atapuerca apresentem marcas associadas ao consumo humano, incluindo mordidas e cortes precisos.

A descoberta ocorreu durante a mesma campanha de escavações que identificou, logo acima dos restos humanos, uma latrina de hiena contendo mais de 1.300 coprólitos (fezes fossilizadas). Essa justaposição sugere que a caverna era compartilhada, de forma alternada, por humanos e grandes carnívoros, o que indica uma convivência marcada por competição e violência em um ambiente hostil.

Novos vestígios à vista

Os arqueólogos acreditam que há ainda muitos restos humanos não escavados nas camadas inferiores do nível TD6.

“A cada nova temporada de campo, encontramos evidências que nos forçam a reavaliar como esses grupos viviam, morriam e lidavam com os mortos”, observa Saladié.

Para os especialistas, as revelações de Atapuerca são essenciais para compreender as origens do comportamento humano — inclusive seus aspectos mais sombrios.



IG Último Segundo