o domínio discreto do tráfico no Amazonas


Tráfico se aproveita da dificuldade da fiscalização para dominar os rios amazonenses
Comando Militar da Amazônia/2016

Tráfico se aproveita da dificuldade da fiscalização para dominar os rios amazonenses

No estado do Amazonas, o coração da floresta virou um ponto estratégico para o tráfico de drogas. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025,  mais de 97 toneladas de entorpecentes – maconha, cocaína e derivados – foram apreendidas pela Polícia Federal (PF) em terras amazonenses, entre 2013 e 2024.

O total representa cerca de 53% do total apreendido no Norte e 1,9% do total nacional. 

Em princípio, os números não indicam o Amazonas como um protagonista do tráfico no contexto regional ou nacional. Mas o próprio Anuário aponta que os dados não conseguem estimar o problema em sua totalidade.

O governo do estado admite dificuldade na fiscalização, mas afirma ter adotado medidas para conter o avanço do crime. 

Tudo sobre as águas 

No relatório, o pesquisador César Mauricio de Abreu Melo explica que isso se deve a diversos fatores, como o uso dos rios como vias de transporte, a dificuldade de fiscalização e o tamanho do estado.

“A complexidade geográfica da Amazônia brasileira confere-lhe um papel central nas dinâmicas do tráfico transnacional de entorpecentes”, pontua o pesquisador. “No caso do estado do Amazonas, que abriga uma das principais portas de entrada da cocaína no país, estamos falando de uma área superior a 1,5 milhão de quilômetros quadrados e de uma extensa linha de fronteira de aproximadamente 3.900 quilômetros”, complementa.

Segundo Melo, a “Rota do Solimões”  é o principal caminho do tráfico na região. Com 1.700 km de extensão, o rio nasce no Peru, passa a fronteira brasileira e se encontra com o Rio Negro em Manaus. Dessa união, surgem o Rio Amazonas e diversos afluentes, que também são utilizados pelos traficantes.

A cidade de Tabatinga, na tríplice fronteira com o Peru e a Colômbia, é a grande porta de entrada das cargas ilícitas. Elas flutuam pelo Solimões e, logo, pelo rio Amazonas, até a capital.

Manaus, nas palavras do pesquisador, “serve como um hub de distribuição e transbordo”.

“Os principais pontos de escoamento para os mercados nacional e internacional, notadamente o europeu, são os portos de Vila do Conde, localizado próximo a Belém, no Pará, e o porto de Santana, em Macapá, no Amapá. Esses terminais marítimos, com acesso ao Oceano Atlântico, representam as ‘portas de saída’ da rota”, explica.

Mas por que os rios?

O transporte fluvial é o mais utilizado na região Amazônica: os rios são necessários para a mobilidade e o acesso a comunidades isoladas, já que não há muitas estradas para fazer a conexão entre essas localidades e os grandes centros. 

Existe uma espécie de dependência da malha hidrográfica, que impõe desafios naturais para quem mora e atua ali, em meio às fortes correntezas, as oscilações do nível da água, bancos de areia e troncos submersos.

Essas “fricções operacionais”, como são chamadas pelo pesquisador no Anuário, também são estruturais, como a falta de conectividade, a ausência de infraestrutura básica, o baixo número de agentes e os custos altos de operação.

Em entrevista ao Portal iG, o secretário de Segurança Pública do Amazonas, o coronel Marcus Vinícius Oliveira de Almeida, destacou os custos operacionais para manter o policiamento em áreas remotas do estado.

“O custo disso tudo é altíssimo. Só em combustível, por exemplo. Para ir de barco até Guajará, no interior do Amazonas, são 3.180 quilômetros navegando dentro do próprio estado. Isso é a mesma distância de Manaus até Porto Alegre. Um voo de Manaus até Tabatinga leva 1h50, o mesmo tempo de um voo entre Manaus e Belém. É tudo muito longe, muito difícil, e isso encarece tudo” , explica.

Esse conjunto de limitações cria um terreno fértil para o tráfico na região. Enquanto o Estado se desdobra para ampliar sua presença e reforçar a fiscalização, os criminosos operam com uma logística cada vez mais sofisticada, que aproveita ao máximo as vantagens que os rios oferecem, como a grande capacidade de carga e baixa fiscalização.

“Com muito azar, um barco que transporta drogas desde a tríplice fronteira até o litoral Atlântico irá percorrer os mais de 6.000 quilômetros de extensão do rio Amazonas e só vai encontrar apenas dois postos de controle. As probabilidades estão a favor dos criminosos” , explica Melo.

Outro fator que faz o transporte fluvial ser o mais utilizado no narcotráfico é o custo-benefício: é mais rentável que o aéreo que, além de ser mais exposto, ainda exige aviões caros, pistas clandestinas e pilotos experientes.

Segundo um estudo do projeto Amazônia 2030, essa preferência se consolidou a partir de 2004, com a implementação da política de interdição aérea.

A medida deslocou o tráfico para as hidrovias e, de quebra, aumentou a violência em comunidades ribeirinhas. A pesquisa ainda identificou os principais “rios de cocaína” na região. Dos 16 listados, 10 nascem nos Andes e conectam as áreas produtoras de cocaína aos centros urbanos brasileiros, como Manaus. São eles:

  • Abuna
  • Acre
  • Caquetá
  • Envira
  • Içá
  • Japurá
  • Javari
  • Juruá
  • Madeira
  • Amazonas
  • Rio Negro
  • Purus
  • Tarauacá
  • Uaupés
  • Mamoré
  • Xiê

Violência

O estudo do Amazônia 2030 traçou um paralelo entre a mudança nas rotas do tráfico e o aumento da violência em municípios ribeirinhos.

Segundo a pesquisa, foram 1.430 homicídios a mais entre 2005 e 2020 no Oeste amazônico, o equivalente a 27% das 5.337 mortes registradas em 67 cidades afetadas. Há também registros que apontam um salto nos casos de overdose.

“Você vai convidando pessoas do Alto Rio, principalmente os jovens, a participarem do acobertamento, da logística ou até mesmo da distribuição de pequenas quantidades. E isso, como qualquer cidade, tem um impacto social enorme: prostituição, homicídios, envolvimento com o tráfico. A droga traz uma mazela muito grande”, afirma.

O secretário reforça a ligação entre a falta de controle nas fronteiras e o aumento nos índices criminais e de violência.

“Quando a gente faz uma interceptação de droga dentro do estado, é porque houve uma falha na segurança da fronteira. A responsabilidade nossa, nesse caso, é secundária”, afirma.

Reações do estado

O governo do Amazonas informou estar fortalecendo a presença nas rotas fluviais. O estado conta com cinco bases em funcionamento: as Bases Arpão 1, 2 e 3, e as unidades Tiradentes e Paulo Pinto Nery. Essas estruturas são responsáveis por grande parte das apreensões no estado.

“Até 2019, o Amazonas apreendia pouco mais de nove toneladas de drogas por ano. A partir de 2021, esse número subiu para 29, 26 e 28 toneladas nos anos seguintes. Isso é reflexo direto do reforço na nossa estrutura de fiscalização fluvial”, destaca o secretário de Segurança Pública.

Segundo o Ministério da Justiça, entre 2020 e 2024, a atuação das Bases Arpão 1 e 2, instaladas no Rio Solimões e na calha do Rio Negro, resultou na apreensão de cerca de 10 toneladas de drogas. O montante equivale a um prejuízo estimado em R$ 243,7 milhões ao crime organizado.

O foco das autoridades de segurança não é só impedir a entrada da droga, mas também reduzir os impactos que ela causa dentro do estado. Entre os feitos anunciados estão a redução das taxas de homicídio – de 35,18 por 100 mil habitantes em 2021 para 24,63 por 100 mil em 2024 – e uma queda de 54% nos roubos a coletivos.

O secretário aponta que o maior desafio ainda é a falta de controle nas fronteiras.

“A insegurança pública que atinge o país é fruto direto da insegurança que existe nas fronteiras. Quando não há apreensão na borda do país, a droga entra e circula”, afirma. 

Ele lembra que a divisa do Amazonas com outros países ultrapassa 3.240 km e envolve três países.

“Controlar isso não é simples. E sem um olhar mais atento da União, vai continuar sendo um gargalo. Não é crítica pela crítica, mas o Brasil precisa, sim, investir mais aqui na região. Se quiser resolver parte dos problemas de São Paulo, do Rio de Janeiro, do próprio país, vai ter que olhar para a Amazônia” , conclui.

Sobre a fiscalização nas fronteiras

Em nota enviada ao Portal iG, o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirma que, em 2024, determinou que 80% dos recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública sejam “obrigatoriamente aplicados em ações de combate ao crime organizado, redução de mortes violentas e proteção patrimonial”.

Além disso, afirmou ter doado mais de R$ 800 milhões em equipamentos para apoiar estados e municípios.

A pasta destaca a Operação Protetor de Divisas e Fronteiras, em que foram apreendidas mais de 750 toneladas do início de 2024 até o primeiro semestre de 2025, com prejuízo financeiro de mais de R$ 1,95 bilhão ao crime organizado no Amazonas.

“Nos estados atendidos pela Operação Protetor em toda a região de fronteira, as apreensões também foram expressivas: 502,60 toneladas de drogas em 2024 e 248,65 toneladas, em 2025 (até junho). O prejuízo total às organizações criminosas nesses estados chega a R$ 6,25 bilhões no período — R$ 4,02 bilhões em 2024 e R$ 2,23 bilhões em 2025 (1º semestre)”, diz o informe.

O MJSP, por meio da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad), também tem atuado para descapitalizar o narcotráfico e prevenir o aliciamento de populações vulneráveis. Bens apreendidos são leiloados, e os recursos revertidos em capacitação, pesquisa e ações sociais. Em Tabatinga, por exemplo, foi criado o primeiro Centro de Acesso a Direitos e Inclusão Social (Cais) Indígena, que oferece suporte às comunidades ameaçadas pelo narcotráfico. Em Manaus, o Pronasci Juventude promove cursos e oficinas para jovens em situação de risco.



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