
O marco macabro no Everest: a história de Green Boots
No ponto mais extremo do planeta, onde o ar rarefeito compromete o raciocínio e o frio paralisa os músculos, jaz uma das figuras mais emblemáticas (e inquietantes) do montanhismo: o “Green Boots”, no local há quase 30 anos.
Trata-se do corpo de um alpinista que morreu durante uma tentativa de alcançar o topo do Monte Everest e que, desde então, tornou-se um macabro ponto de referência para quem se aventura pela rota norte da montanha.
O apelido veio das botas verdes de escalada, visíveis mesmo sob camadas de gelo. Por anos, ele esteve encolhido numa pequena gruta de calcário, a cerca de 8.500 metros de altitude, na temida “zona da morte”, como é chamada a região onde a pressão atmosférica é tão baixa que o corpo humano começa, literalmente, a morrer.
Ali, Green Boots passou a ser uma espécie de guia involuntário, indicando a proximidade do topo para centenas de escaladores.

Monte Everest
Green Boots foi possivelmente um indiano
Acredita-se que o corpo seja do indiano Tsewang Paljor, integrante da Polícia de Fronteira Indo-Tibetana, desaparecido em 1996 durante uma tempestade que ficou marcada por diversas mortes no Everest.
Outros relatos, no entanto, apontam que o cadáver pode ser de outro membro da mesma expedição, Dorje Morup.
O corpo foi parcialmente removido de vista em 2014 pelas autoridades chinesas, mas relatos indicam que ele voltou a ser avistado alguns anos depois, coberto por pedras e ainda na mesma região.
A experiência de brasileiros no Everest
O montanhista brasileiro Rosier Alexandre, que já escalou o Everest, conhece de perto o peso psicológico de encontrar corpos como o do Green Boots durante a subida.

Corpo no Everest
“Desde que comecei a estudar o Everest, já sabia da existência de cadáveres expostos. No início da preparação, pedi a Deus para que me poupasse de vê-los. Mas vi dois corpos congelados. Um deles parecia estar apenas descansando, sentado à beira da trilha”, relata Rosier ao iG.
A cena, segundo ele, é um alerta brutal do que pode acontecer quando algo sai do controle.
“Precisamos ter muita força mental para não entrar em pânico ao ver um corpo ali. É alguém que teve uma história parecida com a sua, um sonho igual ao seu, mas que não voltou para casa”, conta.

Corpo do Everest
Alerta para montanhistas sobre riscos da escalada
Em entrevista ao Portal iG, a médica e documentarista Karina Oliani, que já escalou o Everest pelos dois lados (face norte e face sul) reforça essa percepção:
“Encontrar corpos durante uma escalada faz você relembrar o quanto aquela atividade pode ser exaustiva, pode levar o corpo humano aos limites e, portanto, pode ser perigosa. Isso serve de alerta para os montanhistas ficarem mais atentos aos riscos inerentes da escalada.”
Nas duas vezes em que esteve no topo do mundo, Karina se deparou com situações-limite em que precisou escolher entre seguir adiante ou tentar ajudar alguém:
“Na face sul, consegui realmente ajudar uma pessoa com o auxílio do Pemba, um sherpa. Já na face norte, tentei ajudar um alpinista em estado de confusão mental. Ele se recusou, ficou agressivo e acabou oferecendo risco a nós mesmos. Nessas horas, a escolha entre vida e morte pode ser muito fina.”
Entre homenagens e espetáculo
A figura de Green Boots ultrapassou os círculos do montanhismo e se tornou parte de uma narrativa quase folclórica sobre o Everest. Para Rosier, no entanto, é preciso tratar o tema com respeito.
“Tenho profundo respeito por quem perdeu a vida na montanha. Minha forma de homenageá-los é não publicar fotos dos corpos. Isso é doloroso para as famílias e, muitas vezes, desrespeitoso com os mortos”, afirma.
“Não vejo essas mortes como desestímulo à escalada, mas como um alerta. Precisamos estudar muito e treinar exaustivamente para evitar novas fatalidades”.
Karina concorda com a importância de preservar a dignidade das vítimas e alerta para o risco de transformar essas tragédias em meros marcos turísticos:
“Temos várias imagens de corpos no Everest que ganham apelidos, como se fossem pontos de trilha. Mas essas mortes devem gerar reflexão. A zona da morte exige consciência, preparo e muita experiência. É um dos esportes mais perigosos que existem.”

Hoje, há cerca de 200 corpos no Everest
O dilema do resgate
Sobre o polêmico tema de recuperar corpos, os dois montanhistas concordam que não há resposta simples. Rosier acredita que, quando o resgate é seguro, ele deve ser feito. Caso contrário, a melhor saída é proteger o corpo:
“Se o risco do resgate for alto, é mais prudente fazer uma espécie de sepultura com gelo ou rochas para evitar exposição e preservar a dignidade da pessoa.”
Karina traz sua perspectiva médica e operacional:
“Já tentei resgatar corpos na montanha e sei o quanto isso é difícil. Quando se tenta tirar um corpo sem vida, se está colocando uma pessoa viva em risco. O ideal seria que os governos promovessem mutirões de limpeza, desde que isso não coloque outras vidas em perigo.”
O que os cadáveres ensinam
O Everest já foi palco de mais de 330 mortes conhecidas desde que as escaladas começaram, e especialistas estimam que pelo menos 200 corpos ainda permaneçam na montanha, muitos deles visíveis ao longo da trilha.

Sleeping Beauty
Além de Green Boots, há outros casos que marcaram a história, como o de Francys Arsentiev, conhecida como “Sleeping Beauty” , cujo corpo permaneceu por anos congelado e exposto perto do cume.
Para Karina, esses corpos servem como lembrete brutal da realidade:
“Os cadáveres, os acidentes e as mortes nas montanhas acima de oito mil metros são apenas lembretes dos riscos naturais do esporte. Não é algo a ser glamourizado. É um alerta permanente”.
Rosier complementa:
“As montanhas sempre serão lugares sagrados. Elas nos ensinam a viver com intensidade e responsabilidade. A morte faz parte do cenário, mas o sonho de subir precisa ser tratado com muito respeito — tanto à montanha quanto à vida”.
O corpo de Green Boots, ainda que sem nome confirmado e sem história completa, segue como um lembrete silencioso dos riscos e da fragilidade humana. Uma presença imóvel entre o céu e o abismo, testemunha de que, no Everest, a linha entre conquista e fim é tênue como o oxigênio rarefeito que se respira a 8.800 metros de altura.
IG Último Segundo