
Saúde e nutrição com Clayton Camargos: Mounjaro no Brasil! O remédio é novo, mas a doença é velha
Na atmosfera luminosa de um evento médico em São Paulo, a farmacêutica Eli Lilly formalizou o Mounjaro ® (Tirzepatida) no Brasil, um medicamento que, mais do que tratar diabetes, nos força a confrontar uma pandemia disfarçada: a obesidade. Doença multissistêmica, histórica, social e genética. Na mesma esteira, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária(ANVISA), aprovou sua prescrição para tratamento da obesidade. Se isso parece audacioso, é porque é. Estamos diante de um divisor de águas.
Quando o Mounjaro® atravessa o limiar clínico e se introduz em nosso organismo por meio de uma simples aplicação subcutânea semanal, ele não promove apenas o emagrecimento. Ele ativa um rito silencioso de purificação corporal. Nesse gesto minúsculo há uma narrativa que vai muito além da biologia: há culpa moral, há promessas de salvação estética e há uma exaltação do corpo magro como um ícone quase religioso.
Insistimos em tratar a obesidade com discursos moralizantes, achacando o indivíduo por uma condição que é estrutural. Não por acaso, quando medicamentos como a Tirzepatida surgem, há quem veja neles um “ atalho”, uma “ fraude contra o esforço”. Como se a dor do excesso ponderal fosse leve, como se a vontade de emagrecer não tivesse sido tentada mil vezes em silêncio.
Falamos aqui de uma molécula inovadora que combina a ação dos agonistas duplos dos receptores GIP (peptídeo insulinotrópico dependente de glicose) e GLP‑1 (peptídeo semelhante ao glucagon tipo 1), atuando em múltiplas vias do eixo intestino-cérebro-pâncreas, com efeitos que vão além do controle glicêmico, alcançando reduções ponderais sem precedentes nos modelos de farmacoterapia clínica contemporânea.
No estudo SURMOUNT‑5, publicado em 2025 no New England Journal of Medicine , pacientes portadores de obesidade e sem diabetes apresentaram redução média de 20,1% do peso corporal em 72 semanas de uso da Tirzepatida, superior aos 13,7% observados no grupo controle com Semaglutida (Ozempic®, Wegovy®) 2,4 mg, confirmando que o Mounjaro® é algo bem além de um efeito temporário.
Em outro braço, o SURMOUNT‑1 revelou redução de até 22,5% após 88 semanas de tratamento, estabelecendo um novo parâmetro de eficácia entre os agentes antidiabéticos com efeito redutor de peso.
A eficácia da Tirzepatida também foi evidenciada em indivíduos portadores de diabetes tipo 2 no estudo SURMOUNT‑2, publicado na Lancet , em que a redução de peso oscilou entre 14,7% e 15,7% nos grupos experimentais, associada a significativa melhora da hemoglobina glicada. Esses dados reforçam a potência da molécula tanto no manejo glicêmico quanto na redução ponderal, o que a posiciona como uma intervenção dual e integrada.
Expor os dados dos grandes estudos sem contextualizar os caminhos que levam ao excesso é como inventar uma janela sem vidro. Esses resultados fazem da Tirzepatida não apenas uma droga eficaz, mas possivelmente o tratamento mais promissor contra a obesidade já documentado na história da farmacologia.
Contudo, é fundamental reiterar que não se trata de um remédio isento de riscos. Os efeitos adversos, sobretudo gastrointestinais (náuseas, diarreia, constipação), são frequentes e podem comprometer a adesão, cabe ainda observar o catabolismo de massa muscular no transcurso do tratamento possivelmente repercutido pela baixa ingestão calórica/proteica; além das contraindicações clássicas para pacientes com histórico de carcinoma medular da tireoide ou síndrome de neoplasia endócrina múltipla tipo 2, e gestantes, conforme alertado pelo estadunidense Food and Drug Administration(FDA), pela europeia European Medicines Agency(EMA) e por nossa Agência Nacional de Vigilância Sanitária(Anvisa).
É precisamente neste ponto que a ciência se encontra com a ética da prescrição: a medicalização da obesidade não pode ser dissociada da sua etiologia complexa. Trata-se de uma condição crônica socialmente modulada e, frequentemente, agravada por contextos de vulnerabilidade, insegurança alimentar, marketing alimentar agressivo, desigualdades no acesso à saúde e opacidade de ambientes urbanos obesogênicos.
Dados da World Obesity Federation (2024) indicam que o Brasil figura entre os países com maior crescimento proporcional de obesidade na América Latina, com projeção de que quase metade da população adulta brasileira estará obesa até 2044.
Essa realidade coloca a farmacologia diante de um dilema: o que pode a molécula diante do sistema?
A resposta, ainda que provisória, reside na articulação entre os avanços biotecnológicos e as políticas públicas de prevenção, promoção e cuidado integral. Nenhum medicamento será capaz de reverter, sozinho, um ambiente obesogênico. Sem transformação estrutural na política alimentar, sem educação em saúde contínua, sem ambiente urbano propício à prática de atividade física, qualquer prescrição corre o risco de ser mais um paliativo de luxo.
As diretrizes mais recentes da Endocrine Society (2024) e de um guia clínico publicado por pesquisadores da Deakin University na Obesity Review (2024) reforçam que o tratamento farmacológico deve ser sempre associado a intervenções nutricionais individualizadas, abordagem comportamental, corpo em movimento e suporte multiprofissional, sob risco de recidiva clínica ou reganho ponderal. A medicação é, portanto, ferramenta; não estratégia isolada.
É aí que a Tirzepatida se insere. Ela restaura a orquestra interna do metabolismo, amplificando os hormônios incretinos e reduzindo o apetite, como se afinasse cada instrumento para que a sinfonia corporal tocasse em harmonia. A dieta é a partitura, a atividade física é a regência, e a Tirzepatida é um instrumento recém‑descoberto, afinado, que potencializa a sinfonia. Frédéric Chopin tocaria sem piano? Não.
Pense no Mounjaro® como um maestro alquímico que combina notas hormonais, mas sem público aplaudindo (hábitos saudáveis) não há aclamação. A Itália renascentista criou a arte, mas exigiu patronos e plataformas; nosso renascimento da saúde exige medicação e ambientes saudáveis.
Constelação de benefícios clínicos adicionais
Além do óbvio clínico adentremos nos territórios da medicina translacional, da prevenção ampliada e da biopolítica de longevidade; considere que, embora a Tirzepatida tenha sido inicialmente aprovada para o tratamento do diabetes tipo 2 e, mais recentemente, para obesidade ou sobrepeso com comorbidades, evidências científicas robustas, especialmente de ensaios clínicos fase 2 e 3, vêm demonstrando um horizonte alvissareiro de prerrogativas supletivas, que superam a glicemia e o índice de massa corporal. Abaixo, assento os destaques acessórios desse medicamento para a saúde, com base nas publicações mais recentes:
1. Redução de risco cardiovascular
O estudo SURPASS-4(publicado no New England Journal of Medicine , 2021) acompanhou portadores de diabetes de alto risco cardiovascular e mostrou que a Tirzepatida:
- Reduziu significativamente a pressão arterial sistólica (em média de 5 a 8 mmHg).
- Diminuiu os níveis de triglicerídeos e aumentou discretamente o HDL.
- Mostrou uma tendência de redução de eventos cardiovasculares maiores (MACE), como infarto e Acidente Vascular Cerebral (AVC), o que está sendo aprofundado no estudo SURPASS-CVOT, aguardado com grande expectativa.
Esse efeito é potencialmente superior ao de outros GLP-1 agonistas como Semaglutida (Ozempic® e Wegovy®) e dulaglutida (Trulicity®), devido à dupla ação combinada em GLP-1 e GIP, modulando metabolismo lipídico e inflamação sistêmica.
2. Potenciais efeitos neuroprotetores e prevenção de Alzheimer.
Estudos preliminares em modelos animais (e algumas análises retrospectivas em humanos) sugerem que a Tirzepatida, assim como outros agonistas de GLP-1, pode ter efeitos neuroprotetores, especialmente pela:
- Redução da resistência insulínica no sistema nervoso central.
- Diminuição da neuroinflamação e deposição de placas beta-amiloide.
Estudos pré-clínicos em modelos animais indicam que agonistas de GLP1 possuem ação neuroprotetora, potencialmente relevantes para prevenção de Alzheimer. Ensaios clínicos em humanos com Semaglutida estão em curso, e a Tirzepatida, por combinar GLP1 e GIP, desponta como uma molécula de interesse nesse campo, mas ainda sem dados clínicos publicados. Embora promissora, essa aplicação permanece experimental.
3. Melhora da esteatose hepática (fígado gorduroso não alcoólico).
A obesidade e o diabetes tipo 2 são comumente acompanhados por doença hepática gordurosa não alcoólica. Estudos como o SYNERGY-NASH(em andamento) e análises secundárias dos ensaios SURPASS indicam:
- Redução significativa de enzimas hepáticas (ALT e AST).
- Melhoras nos marcadores indiretos de fibrose hepática.
- Redução expressiva da gordura hepática medida por ressonância.
4. Redução da gordura intra-abdominal.
Isso se dá por quê a diminuição de peso se concentra no tecido adiposo visceral e subcutâneo.
5. Melhora na apneia obstrutiva do sono.
A redução ponderal promovida pela Tirzepatida também tem se associado a redução significativa do índice de apneia-hipopneia (IAH). O ensaio clínico SURMOUNT-OSA está avaliando essa hipótese formalmente, mas dados preliminares sugerem que pacientes com obesidade moderada a grave têm melhora notável na qualidade do sono, redução do ronco e menos necessidade de CPAP.
Outras considerações:
- Síndrome dos ovários policísticos (SOP): estudos estão testando a Tirzepatida para restabelecer ovulação e melhorar resistência insulínica em mulheres com SOP.
- Doença renal crônica: o efeito de melhora no controle glicêmico e pressão arterial, além da possível redução de microalbuminúria, sugere um efeito nefroprotetor, embora ainda não aprovado para essa indicação.
- Inflamação sistêmica e marcadores pró-inflamatórios: em vários estudos, houve redução de PCR ultrassensível, interleucinas e TNF-alfa, marcadores associados à síndrome metabólica e risco cardiovascular.
Existe Mounjaro manipulado?
Como em toda grande ópera contemporânea, o terceiro ato costuma ser desconcertante. Ao fundo da cena em que reluz a ciência de ponta, desponta um subpalco onde ecoam vozes dissonantes e agulhas clandestinas.
É ali que se encena o espetáculo tenebroso do mercado negro da magreza: uma engrenagem invisível que alimenta clínicas, spas e consultórios que vendem não só promessas, mas a mais perigosa das ilusões: a de que emagrecer depressa, sem freio e regulação, vale qualquer custo.
Vamos contextualizar: ocorreu a existência de uma regulação temporária e emergencial para compounding da Tirzepatida nos EUA, expirada desde dezembro de 2024 com o fim da escassez comunicada pelo FDA. Com esse encerramento legal, o mercado de versões manipuladas se tornou ilícito naquele país, mas isso não impediu sua circulação clandestina. A Eli Lilly entrou com ações judiciais contra farmácias envolvidas, definindo essas práticas como inseguras e enganosas.
Criou-se um flanco vulnerável no qual versões genéricas, de origem duvidosa, começaram a circular livremente no submundo das agulhas paralelas. Esse fenômeno se estendeu obscuramente a consultórios e clínicas no Brasil. A exceção virou regra. A emergência virou rotina. E, mesmo assim, como uma mercadoria fantasma, essas versões foram impulsionadas por uma rede subterrânea de médicos coniventes, influenciadores digitais mal-intencionados e clínicas de estética com verniz de modernidade e cheiro de fraude.
Esses produtos são censurados pelas sociedades científicas e órgãos reguladores. Não têm controle sanitário. Não têm garantia de concentração, estabilidade, refrigeração ou pureza. Não passam por ensaios clínicos. Não estão sequer dentro da lei. São drogas que operam à margem da ciência e da ética, e que se sustentam apenas na fragilidade emocional dos corpos que clamam por aceitação, ainda que injetem veneno para tentar alcançá-la.
Assim, a Tirzepatida manipulada, um Frankenstein farmacêutico, não é apenas um risco à saúde individual. É, sobretudo, um sintoma. Um reflexo desafiador de um sistema que consagra saúde, mas cultua aparência; que criminaliza o corpo gordo, mas também o abandona; que cria medicamentos revolucionários, mas deixa que eles se tornem objetos de contrabando estético.
É o capitalismo da magreza operando sua mais nova logística: a biotecnologia da escassez como oportunidade de exploração e desespero.
Trata-se, portanto, de uma versão gourmet da desesperança, em que se paga caro por seringas de origem incerta, administradas em ambientes de estética travestidos de centros médicos. A medicina transformada em feira de vaidades no comércio das sombras.
Se a Tirzepatida é, de fato, a sinfonia mais elegante para obesologia moderna, então esse mercado negro é a cacofonia de um sistema falido, onde a partitura ética foi rasgada e reescrita pelas mãos nervosas do lucro e do desejo.
O rosto da magreza: quando a pele denuncia o milagre
Como toda narrativa bem-sucedida, ela tem reviravoltas. Uma delas começa a se desenhar silenciosamente, na superfície da pele. Mais precisamente, naquilo que dermatologistas já apelidaram, com ironia clínica e precisão imagética, de Ozempic face . Ou, em sua versão mais recente, Mounjaro face .
A descrição é quase cinematográfica: maçãs do rosto esvaziadas, contorno mandibular afundado, olhos encovados, papada flácida, colágeno em debandada. O rosto, antes cheio de vida e volumes, parece ter passado por um acelerador de envelhecimento. E não estamos falando de octogenários. São mulheres e homens na casa dos trinta aos cinquenta anos, que após emagrecerem 10, 15 ou 20 kg com agonistas de GLP-1 e GIP, se olham no espelho e não se reconhecem. O milagre, ao que tudo indica, tem preço e se apresenta em forma de colapso dérmico.
Mas, ao contrário do que sugerem as teorias conspiratórias que acusam os dermatologistas de forjarem um novo mercado de preenchimentos e liftings, esse fenômeno tem base fisiológica sólida. A gordura subcutânea da face é uma estrutura funcional e estética. Sua perda abrupta, comum em emagrecimentos velozes como os induzidos pela Tirzepatida, compromete o suporte cutâneo. A pele, que não teve tempo de se adaptar, cede. O resultado é uma aparência desidratada, exaurida, mais velha do que de fato se é. Um rosto que emagrece mais rápido que a alma.
Estudos recentes reforçam a legitimidade dessa queixa. Uma revisão sistemática publicada no Journal of Clinical and Aesthetic Dermatology em 2024, descreve perdas significativas de gordura nas regiões temporal, malar e mandibular após tratamentos com agonistas de GLP-1, associadas à percepção de envelhecimento precoce. Um levantamento da American Academy of Facial Plastic and Reconstructive Surgery mostrou que mais de 60% dos cirurgiões relataram aumento na procura por intervenções faciais corretivas por pacientes que usaram Ozempic® ou Mounjaro®. E embora o termo ainda não figure nos compêndios oficiais de doenças dermatológicas, a clínica já o incorporou à sua gramática.
Em um tempo em que tudo é filtrado, a ironia maior talvez esteja em que, com Mounjaro®, não é o filtro que embeleza. É o corpo real que começa a se desfazer. Em vez da juventude líquida, temos a velhice subcutânea. E mesmo isso, é claro, será medicalizado. Surgirão protocolos para “ corrigir” a Ozempic face : preenchedores dérmicos, bioestimuladores, ácido hialurônico, lifting com fios por metro. O corpo farmacológico nunca caminha sozinho: ele é seguido por uma indústria da reparação. A beleza, afinal, é um mercado de reposição contínua. O rosto denuncia. A máscara cai.
A posta restante é brutal: o que escapará de nossa imagem quando tudo for reversível, menos o tempo? Quando tudo for intercambiável menos a própria subjetividade? O que será de nós quando nossa face também se tornar um efeito adverso?
Com o Mounjaro será o fim da cirurgia bariátrica?
Embora a Tirzepatida represente um avanço extraordinário, não eliminará a necessidade de cirurgia bariátrica. Ambas as estratégias têm lugar definido e complementar na assistência moderna.
Eficácia comparada segundo a American Society for Metabolic and Bariatric Surgery (ASMBS):
- Cirurgia bariátrica (gastric by-pass e sleeve) ainda proporciona, em média, cerca de 30-32 % de emagrecimento no primeiro ano e mantém cerca de 25% por até 10 anos, com benefícios comprovados em redução de mortalidade e complicações, como câncer e diabetes.
- Mounjaro®, na dose de 15 mg/semana, oferece aproximadamente 15-22 % de redução ponderal, com platô por volta de 18 meses. Embora impressionante, ainda há uma lacuna clara em favor da cirurgia.
Durabilidade e manutenção:
- A cirurgia dita uma modificação física permanente, induzindo mudanças hormonais duradouras que favorecem a manutenção do peso a longo prazo.
- Por outro lado, a Tirzepatida exige uso contínuo: a interrupção leva ao reganho de peso significativo, por volta de metade da redução em um ano.
Perfil de risco:
- Cirurgia envolve anestesia, risco operatório e necessidade de acompanhamento nutricional e psicológico, mas taxas de mortalidade e complicação são semelhantes a procedimentos eletivos comuns.
- Tirzepatida apresenta perfil mais seguro: efeitos gastrointestinais transitórios, sem risco cirúrgico, porém exige supervisão clínica contínua.
Custo-efetividade:
- A cirurgia mostra-se mais custo-efetiva no longo prazo, já que os benefícios se estendem por anos sem necessidade de reposição constante.
- A medicação contínua representa um custo recorrente alto, embora em combinação com a cirurgia possa impedir reganho de peso e melhorar eficiência.
Um futuro integrado:
Na prática clínica e nas evidências emergentes, como meta-análises apresentadas pela ASMBS, as duas abordagens podem ser integradas:
- Pré-cirurgia, o uso de GLP ‑ 1 (ou Tirzepatida®) ajuda no emagrecimento pré-operatório, reduzindo riscos em pacientes de peso extremo.
- Pós-cirurgia, a Tirzepatida pode atuar para prevenir o reganho de peso, amplificando a durabilidade dos resultados .
Pobres demais para emagrecer, gordos demais para existir: Mounjaro® e o apartheid da balança
Em termos sanitários, o impacto da Tirzepatida pode ser monumental. Se sua incorporação no sistema público for viável e sustentada por diretrizes clínicas robustas, haverá espaço para ganhos concretos: redução da carga das doenças crônicas não transmissíveis, alívio na ocupação hospitalar, melhora da produtividade e da qualidade de vida populacional.
Da dimensão econômica, a longo prazo, o investimento em terapias eficazes poderá compensar os custos bilionários hoje direcionados ao tratamento das complicações da obesidade e do diabetes.
Se quisermos projetar os impactos dessa nova era, podemos imaginar um Brasil daqui a vinte anos onde parte considerável da população não precise mais ser refém da obesidade severa, onde o Sistema Único de Saúde (SUS) integre intervenções farmacológicas com educação nutricional, assistência psicológica e promoção de atividade física. Mas para isso, precisamos mais do que “canetas emagrecedoras”. Precisamos de uma nova consciência pública. Sem ela, o Mounjaro® será apenas uma ostentação prescrita em consultórios privados e inacessível às camadas mais vulneráveis da população; aquelas que mais precisam.
A desigualdade no acesso pode agravar ainda mais a clivagem entre quem tem condições de pagar por uma solução farmacológica e quem continuará a enfrentar o estigma da obesidade sem acesso a qualquer forma de cuidado efetivo. Como argumenta Anne Pollock (2022), em “Sickening: Anti-Black Racism and Health Disparities in the United States” , as inovações biotecnológicas, se não forem democratizadas, apenas reforçam os abismos que dizem combater. É, como argumenta Foucault em Microfísica do Poder (1978): a aplicação vertical do biopoder.
O risco não é apenas de iatrogenia clínica, mas de iatrogenia simbólica: a medicalização excessiva da obesidade pode reforçar o imaginário de que a solução está apenas na biologização das abordagens terapêuticas, deslocando o foco das condições estruturais que produzem e mantêm o problema.
O acesso restrito ao Mounjaro® pode aprofundar desigualdades, criando um apartheid terapêutico entre quem pode pagar pela inovação e quem permanece às margens do cuidado.
Isto é, no Brasil, o valor para 04 semanas de tratamento, dependendo da dose prescrita, pode chegar até R$1.800,00.
A instrumentalização da Tirzepatida como a “ cura definitiva” pode reforçar exclusões: quem pode pagar, alcança o “ corpo promissor”; quem não pode, permanece condenado a uma moral da culpa. E, como sabemos, a medicalização em massa de um problema estrutural tende a reproduzir desigualdades e aprofundar estigmas.
A chegada do Mounjaro® ao Brasil não é apenas um fato clínico. É também um evento político, simbólico e social. Trata-se de uma oportunidade para repensarmos a obesidade como uma questão que atravessa corpos e estruturas, moléculas e narrativas, laboratórios e cozinhas. O remédio mais eficaz continua sendo a combinação: ciência rigorosa, política pública consistente, escuta clínica generosa e ação social transformadora.
O avanço da ciência precisa ser celebrado, mas com criticidade. O desafio, portanto, é integrar moléculas, inovação, equidade e políticas. A Tirzepatida pode oferecer uma solução parcial, mas não substitui o necessário redesenho da cultura alimentar, do território urbano e da atenção primária.
O remédio nos entrega o que temos de melhor em tecnologia molecular. Mas a saúde coletiva exige, também, o que temos de melhor em humanidade.
O peso do corpo não é apenas físico. Ele transporta séculos de história, culpa, exclusão e desigualdade. O Mounjaro® pode ser o início de um novo capítulo. Mas, só se formos capazes de reavaliar o que realmente significa cuidar, tratar e libertar. Do contrário, continuaremos girando em torno de soluções pontuais, enquanto a balança da saúde pública persiste em pender para o lado do colapso.
A agulha não carrega apenas moléculas. Carrega dilemas: sobre quem decide o que é belo, quem pode pagar pela estética, quem sofre metanoia por não ser magro. A transição do corpo gordo para o magro por meio da Tirzepatida pode ser muito mais do que perda de quilos; pode ser a redenção rasa de um sistema que precisa de cura mais profunda. Se a estética vira dogma, o remédio vira prece, e a cultura da beleza exige sua bênção semanal em uma picadinha abdominal.
O Mounjaro® é arrojado, no entanto, a verdadeira revolução continuará sendo feita no prato, no passo e no pensamento.
Informação é prevenção. Você tem alguma dúvida sobre saúde, alimentação e nutrição? Envie um e-mail para [email protected] e poderei responder sua pergunta futuramente. Nenhum conteúdo desta coluna, independentemente da data, deve ser usado como substituto de uma consulta com um profissional de saúde qualificado e devidamente registrado no seu Conselho de Categoria correspondente.
*Clayton Camargos é sanitarista pós-graduado pela Escola Nacional de Saúde Pública – ENSP/Fiocruz. Desde 2002, ex-gerente da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC) do Ministério da Saúde. Subsecretário de Planejamento em Saúde (SUPLAN) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES-DF). Consultor técnico para Coordenação-Geral de Fomento à Pesquisa Em Saúde da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (SCTIE) do Ministério da Saúde. Coordenador Nacional de Promoção da Saúde (COPROM) da Diretoria de Serviços (DISER) da Fundação de Seguridade Social. Docente das graduações de Medicina, Nutrição e Educação Física, e coordenador dos estágios supervisionados em nutrição clínica e em nutrição esportiva do Departamento de Nutrição, e diretor do curso sequencial de Vigilância Sanitária da Universidade Católica de Brasília (UCB). Atualmente é proprietário da clínica Metafísicos.
CRN-1 2970.
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