Cripta do século XVII em Milão revela detalhes da vida de trabalhadores pobres através de estudo científico
Uma cripta subterrânea do século XVII, descoberta sob um hospital, o Ospedale Maggiore de Milão, na Itália, abriga cerca de 2,9 milhões de restos mortais de pacientes pobres que morreram entre 1637 e 1697.
O local, selado por 300 anos devido ao mau cheiro causado pela decomposição lenta dos corpos, foi reaberto em 2010 por pesquisadores da Universidade de Milão (UNIMI).
A equipe multidisciplinar — incluindo arqueólogos, geneticistas e toxicologistas — busca reconstruir a vida de trabalhadores urbanos esquecidos pela história tradicional, utilizando análises de DNA, placas dentárias e até tecidos moles preservados.
Pesquisadores coletam restos mortais para análise.
Condições de saúde precárias
Os ossos revelam uma população marcada por doenças como tuberculose, sífilis e desnutrição.
Marcas de amputações e cirurgias rudimentares mostram os limites da medicina da época.
“De 10 a 15 pacientes morriam por dia no hospital”, explica Mirko Mattia, bioarqueólogo da UNIMI.
A alta umidade das câmaras funerárias preservou até tecido cerebral, permitindo a detecção de substâncias como ópio e coca — esta última, usada como estimulante, antecipa em 200 anos o primeiro registro histórico da planta na Europa.
Ospedale Maggiore atualmente, à esquerda; e uma pintura anônima do século XVII, mostra seu pátio repleto de pacientes, equipe médica e visitantes, à direita.
Dieta e plantas do Novo Mundo
Placas dentárias fossilizadas indicam que a dieta dos pobres era baseada em grãos como trigo e cevada, com vestígios surpreendentes de batata, recém-introduzida das Américas.
“A história diz que a batata era impopular, mas nossos dados mostram que já estava presente”, afirma Marco Caccianiga, botânico da UNIMI.
Já o milho, hoje símbolo da culinária local, era raro, e não há sinais de tomate — possivelmente consumido apenas como planta ornamental.
Drogas e práticas médicas
Análises toxicológicas detectaram morfina, canabinoides e coca em tecidos preservados.
“Encontramos coca em nove pacientes. Isso sugere que seu uso já era disseminado na Europa”, diz Gaia Giordano, toxicologista forense.
Os registros da farmácia do hospital, no entanto, só mencionam o ópio, indicando que outras drogas eram usadas sem supervisão médica.
Os arquivos do Ospedale Maggiore guardam séculos de registros de pacientes, receitas farmacêuticas, livros didáticos de medicina e documentos que descrevem o funcionamento do hospital.
Registros e reconstrução de identidades
Os arquivos do Ospedale Maggiore, com 4 km de prateleiras, incluem o Livro dos Mortos — o primeiro registro municipal de causas de óbito na Europa, iniciado em 1451.
Combinando esses dados com ossos, pesquisadores reconstruíram rostos de pacientes, como o de uma mulher vítima de sífilis.
O crânio de uma mulher apresenta marcas deixadas pela sífilis, à esquerda; cientistas forenses reconstruíram como sua aparência seria em vida, à direita.
“Os corpos são uma representação mais honesta dos vulneráveis”, afirma Cristina Cattaneo, chefe do laboratório forense da UNIMI.
IG Último Segundo