Justiça freia tentativa de Trump de punir quem colabora com Haia


A ordem de Trump estava sendo usada para intimidar advogados, acadêmicos e consultores que colaboram com o Tribunal de Haia
Casa Branca/Reprodução

A ordem de Trump estava sendo usada para intimidar advogados, acadêmicos e consultores que colaboram com o Tribunal de Haia

Uma decisão da Justiça Federal dos Estados Unidos, expedida na sexta-feira (18), impôs um freio à  tentativa do presidente Donald Trump de punir pessoas que colaboram com o Tribunal Penal Internacional (TPI), conhecido como Tribunal de Haia. A juíza Nancy Torresen, da Corte Distrital do Maine, apontou que a ordem executiva assinada por Trump viola a Primeira Emenda da Constituição americana, que protege a liberdade de expressão, e suspendeu sua aplicação. 

A ordem de Trump mirava diretamente investigações do TPI sobre ações de militares americanos no exterior, especialmente em locais como o Afeganistão, além de processos envolvendo autoridades israelenses. A Casa Branca classificava tais apurações como “sem fundamento” e contrárias aos interesses dos Estados Unidos e de seus aliados estratégicos, como Israel

Diante disso,  Trump autorizou sanções econômicas e restrições de viagem a qualquer cidadão americano que prestasse serviços. inclusive intelectuais ou advocatícios, a membros do TPI envolvidos em investigações contra os EUA.

Assim, a ordem do presidente norte-americano estava sendo usada para intimidar advogados, acadêmicos e consultores que colaboram com o Tribunal de Haia até mesmo em temas sem relação direta com os EUA, como investigações de crimes contra civis em Bangladesh, Mianmar e Afeganistão.

Ativistas contestaram constitucionalidade da ordem

A decisão da juíza Nancy Torresen ocorreu após uma ação judicial apresentada por dois defensores dos direitos humanos em abril, contestando a constitucionalidade da medida. Para ela, a ordem executiva de Trump restringe indevidamente a liberdade de expressão, ao proibir serviços que beneficiem o TPI ou seus integrantes, independentemente de relação direta com investigações envolvendo os EUA ou seus aliados.

A decisão da juíza beneficia diretamente os ativistas Matthew Smith e Akila Radhakrishnan, que haviam interrompido sua atuação junto ao TPI por receio de sanções. Segundo a magistrada, a ordem de Trump extrapola seu propósito declarado ao impedir serviços com base em fala, como pareceres técnicos e assessorias jurídicas. “Ela restringe substancialmente mais a liberdade de expressão do que o necessário para atingir esse objetivo”, escreveu Torresen.

O impacto da decisão, no entanto, ainda é limitado. Por ora, vale apenas para os dois autores da ação. A juíza rejeitou conceder uma liminar com alcance nacional, o que reflete uma diretriz recente da Suprema Corte dos EUA para restringir decisões de primeira instância com efeitos amplos. Mesmo assim, a sentença representa um revés simbólico para a tentativa de Trump de isolar e deslegitimar a atuação do Tribunal de Haia.

Crimes de guerra

A ofensiva de Trump contra o tribunal começou após a abertura de investigações sobre supostos crimes de guerra cometidos por militares americanos no exterior e a emissão de mandados de prisão contra autoridades israelenses, incluindo o premiê Benjamin Netanyahu. O governo Trump chegou a impor sanções a quatro juízes do TPI e ao promotor-chefe da corte, Karim Khan, além de incluir seus nomes na lista de pessoas bloqueadas pelo Departamento do Tesouro dos EUA.

Entre os atingidos pelas sanções está também Francesca Albanese, relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) que colabora com o Tribunal Penal Internacional nas investigações sobre Gaza.

Para o então secretário de Estado Marco Rubio, ela ajudava em “campanhas de guerra política e econômica” contra os interesses americanos. Já Albanese classificou as sanções como “técnicas mafiosas de intimidação”.

Embora os EUA não sejam parte do Estatuto de Roma — tratado que criou o TPI —, a decisão evidencia o incômodo de governos que se veem investigados por instituições internacionais com poder de responsabilização penal.

A medida foi amplamente criticada pela comunidade internacional. O próprio TPI e dezenas de países condenaram a postura dos Estados Unidos, vista como uma tentativa de intimidar e enfraquecer a atuação independente do tribunal internacional. 

O Tribunal de Haia

Criado para julgar os crimes mais graves contra a humanidade, o Tribunal Penal Internacional (TPI) é uma corte permanente e independente com sede em Haia, nos Países Baixos. Seu papel é investigar e responsabilizar indivíduos acusados de crimes como genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e, mais recentemente, crimes de agressão.

O TPI atua de forma complementar à justiça nacional e só atua quando os tribunais internos de um país se mostram incapazes ou desinteressados em conduzir os processos.

O Tribunal foi criado oficialmente em 2002, após a entrada em vigor do Estatuto de Roma, tratado adotado em 1998 por uma conferência de representantes da ONU. Desde então, 123 países ratificaram o documento e reconhecem a jurisdição do TPI, incluindo todos os Estados da União Europeia e boa parte da América Latina.

Alguns países, no entanto, resistem à jurisdição da Corte. Estados Unidos, Rússia e Israel assinaram o Estatuto, mas nunca o ratificaram. Outros, como China e Índia, sequer assinaram.

Mesmo com essas limitações, o TPI tem avançado em casos de grande impacto internacional. Ao longo dos anos, emitiu mandados de prisão contra líderes africanos e, recentemente, passou a investigar crimes cometidos na guerra da Ucrânia, incluindo ações atribuídas a autoridades russas.

Por essa abrangência, frequentemente o Tribunal enfrenta resistência de governos de grandes potências, principalmente quando suas investigações atingem aliados estratégicos ou líderes nacionais.

Para países como os EUA, permitir que um tribunal externo julgue seus cidadãos seria abrir mão de parte de sua autoridade. Já para defensores do TPI, o tribunal é uma ferramenta fundamental para combater a impunidade em escala global, especialmente em casos onde os próprios sistemas de justiça falham.

Bolsonaro foi denunciado ao Tribunal

Em 2019, organizações da sociedade civil protocolaram junto ao Tribunal de Haia uma denúncia contra os ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), alegando que ele teria incentivado violência contra povos indígenas, desmontado estruturas de fiscalização ambiental e sido omisso diante do aumento de crimes na Amazônia. A representação sustenta que essas condutas podem configurar crimes contra a humanidade.

Até o momento, o TPI não anunciou a abertura de investigação formal sobre Bolsonaro.



IG Último Segundo