Crítica ao artigo “Não é pelo batom” (Migalhas, 22 de março)


Por Leonardo Corrêa*

Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum
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Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

O artigo publicado pelo Migalhas busca justificar a condenação de Débora Rodrigues dos Santos com um texto altamente retórico, emocional e simbólico. Contudo, ao fazê-lo, abandona a técnica jurídica e adota recursos que violam os próprios fundamentos do Estado de Direito. Trata-se de um texto mais próximo da retórica de conveniência do que da análise crítica. E por isso, exige resposta.

Logo no início, o texto tenta capturar o leitor por meio de uma analogia dramática: a destruição da Pietà, de Michelangelo, em 1972. Mas há um problema factual e outro jurídico. Factualmente, a analogia é equivocada: a escultura atacada por Laszlo Toth era uma obra delicada, esculpida em mármore. Já a estátua A Justiça, de Alfredo Ceschiatti, é feita em granito, tem três metros de altura, pesa toneladas e foi apenas marcada com batom. Juridicamente, a comparação é irrelevante: o Direito não deve trabalhar com simbolismos emocionais, mas com fatos, tipos penais e provas individualizadas.

A comparação com a Pietà é um exemplo clássico do estratagema 1 de Schopenhauer: amplificar desproporcionalmente a tese do adversário para que ela pareça absurda. Equiparar o gesto de Débora com o de um homem que agrediu fisicamente uma obra-prima com marteladas é um exagero deliberado, feito para gerar repulsa emocional, não reflexão racional.

Outro recurso recorrente no texto é o estratagema 27: apelar ao pathos em vez do logos — substituindo argumentos por imagens emocionais e evocativas (“o sagrado profanado”, “ordem, beleza e transcendência”). São imagens de impacto que anestesiam o espírito crítico e deslocam o debate do plano normativo para o plano mítico. Nesse ponto, chama a atenção a comparação figurativa do STF – e, por quê não, dos seus Ministros – ao divino. Não fosse a metáfora absurda, por razões óbvias, deixa evidente que o editorial encampa o discurso governista e da mídia mainstream de que o STF salvou a democracia.

O texto também utiliza o estratagema 10, muito comum no discurso jurídico militante: transformar suposições não provadas em premissas. A adesão consciente, contínua e dolosa de Débora a um “projeto golpista” não é demonstrada com provas objetivas no processo. O que há são inferências, extrapolações e presunções subjetivas. Ainda assim, o artigo toma essa narrativa como base certa, tratando como fato aquilo que deveria ser demonstrado. É uma petição de princípio disfarçada de análise jurídica: a culpa é presumida para, então, ser confirmada — e o julgamento se converte em um exercício de reafirmação simbólica.

Em seguida, o artigo incorre no estratagema 5, que é a clássica falácia do espantalho: atribuir à parte criticada uma tese que ela não sustentou, para então refutá-la com facilidade. Nenhuma crítica séria à decisão do STF afirma que Débora foi condenada “apenas pelo batom”. O que se questiona, com base jurídica sólida, é a ausência de conduta concreta que corresponda aos tipos penais de “golpe de Estado” e “abolição do Estado Democrático de Direito”. A crítica verdadeira recai sobre a desproporcionalidade, a falta de individualização e a imputação simbólica. O artigo, no entanto, rebate uma versão distorcida da crítica — e com isso evita enfrentar os argumentos reais, como o de que Débora deveria ser julgada e condenada pelo que efetivamente praticou, ou seja, o crime de deterioração de patrimônio tombado.

O texto também lança mão do estratagema 19: tentar vencer pela autoridade e não pela razão. Cita o ministro Moraes como fonte da verdade, sem interrogar os fundamentos, as provas ou as premissas do voto. A figura da autoridade substitui o debate sobre a substância. Tal premissa da infalibilidade do Ministro não deixa de guardar relação com a metáfora ao divino tratada acima.

Outro vício é o estratagema 29: empregar palavras ambíguas ou de alto valor emocional para camuflar a fraqueza do argumento. Palavras como “desmonte do Estado Democrático de Direito”, “empreitada criminosa”, “pacto de ilusão”, “narrativa golpista” — são expressões sem densidade jurídica, usadas como âncoras semânticas para legitimar conclusões já antecipadas.

A invocação do iter criminis como estrutura teórica para condenar Débora transforma cogitação e contexto em execução. O caminho penal passa a ser uma trilha de suposições e pertencimentos, não de atos e intenções comprovadas. A criminalização do ambiente se sobrepõe à conduta.

No final, a analogia com o Caso Dreyfus, ironicamente, volta-se contra o próprio texto. Lá, o Estado condenou um inocente para preservar uma ficção institucional. Aqui, a Corte é instada a manter uma versão oficial dos fatos, mesmo que isso exija distorcer a tipicidade penal, ampliar artificialmente o dolo e transformar o Judiciário em um tribunal de exceção — onde o resultado já está previamente desenhado, e o processo apenas o confirma.

A frase “perdeu, mané” é apresentada como assinatura simbólica de um projeto de ruptura. Mas o que se vê, na verdade, é a assinatura simbólica de uma jurisprudência em que o Direito se curva à política, e a Constituição é tratada como obstáculo a ser reinterpretado — não como limite a ser respeitado. Ironia suprema: lembre-se que a tal frase foi dita, publicamente, por um ministro do Supremo Tribunal Federal a um brasileiro em Nova Iorque. Quando dita pela toga, virou símbolo de resistência democrática contra os “fascistas”. Quando escrita com batom, virou golpe.

Essa inversão de pesos e significados revela o que há de mais preocupante: o abandono da Constituição como parâmetro vinculante de contenção do poder punitivo. O texto constitucional não admite a relativização dos direitos fundamentais por conveniência política. O artigo 5º estabelece garantias que são invioláveis — inclusive a legalidade, o devido processo legal, a presunção de inocência, a individualização da pena e a proporcionalidade. E o artigo 60, § 4º, inciso IV, é categórico: tais direitos são cláusulas pétreas. Nem mesmo uma emenda constitucional poderia suprimi-los. Quanto mais um voto judicial.

Ao admitir uma condenação fundada em simbolismo, contexto difuso e inferências, está-se abrindo uma brecha inconstitucional — e intransponível pela própria arquitetura normativa da República. O Judiciário não pode ser intérprete criativo daquilo que foi blindado pelo constituinte. Não se rasga cláusula pétrea com toga.

O artigo do Migalhas tenta convencer que “não foi pelo batom”, mas erra no essencial: não foi apenas pelo batom — foi pelo que se quis fazer dele. Um gesto isolado foi convertido em símbolo de culpa presumida, em metáfora sentenciante, em doutrina de exemplaridade. O que se julga não é apenas uma mulher, mas a legalidade em si — e o preço que estamos dispostos a pagar para preservá-la ou, pior, para sacrificá-la em nome de uma versão conveniente da ordem.

Ao fim da leitura, o artigo do Migalhas parece ecoar não a Constituição, mas o senso moral invertido que Mal Secreto, de Raimundo Corrêa, tão bem denunciava. A justiça, quando se afasta da interioridade, da prudência e da humanidade, transforma-se em espetáculo. Julga pela aparência, condena pelo contexto e pune para reafirmar sua própria imagem. Mas como adverte o poeta, “quanta gente que ri, talvez existe, cuja ventura única consiste em parecer aos outros venturosa”. O mesmo vale para instituições. Nem tudo o que parece firme está certo. Nem tudo o que parece justiça é justo. Quando a toga serve mais para ocultar que para revelar, o Direito deixa de ser remédio — e passa a ser o próprio mal secreto.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG



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