Humberto e Eixinho: colunista desenhou a história da capital em mais de 3,5 mil quadrinhos
No alto do Congresso Nacional, no ponto central de Brasília, um passarinho tímido observa o horizonte. De lá, contempla o céu largo sobre os edifícios brancos, sente o vento seco do Cerrado, escuta o burburinho da cidade embaixo, vê o vai e vem apressado dos carros no Eixo Monumental, e, de vez em quando, arrisca uma reflexão sobre a vida. A capital cresceu sob seu olhar e, durante quase uma década, ele a descreveu com lirismo, pitadas de humor e uma certa melancolia.
Criado pelo cartunista e publicitário Humberto Junqueira, Eixinho, o monumental é o passarinho que ficou conhecido Brasil afora ao entrar para as páginas diárias do Correio Braziliense entre os anos de 1980 e 1990. Foram quase quatro mil tiras publicadas, um feito impressionante para um personagem que nasceu sem grandes pretensões.
Agora, décadas depois, Eixinho está de volta. Mas não do jeito convencional. Humberto, que hoje tem apenas 5% da visão, devido a uma doença degenerativa da retina chamada retinose pigmentar, desbrava caminhos para trazer seu personagem à vida novamente. Com ajuda da família, de colegas e da tecnologia, ele está redescobrindo formas de criar novas histórias.
O fascínio pelos quadrinhos
Na infância, em Anápolis, o goiano que se diz brasiliense de coração cresceu fascinado pelas várias formas da arte. Mas as histórias que combinavam imagens e textos sempre tiveram um lugar especial. A ida às lojas de revistas com o pai e os irmãos era um evento semanal. “Cada um escolhia um gibi diferente”, lembra. Turma da Mônica , Luluzinha , Recruta Zero … Já na adolescência, novos interesses se somaram ao hobby , como as graphic novels , os heróis da Marvel e da DC.
Curiosamente, o destino do publicitário e de Brasília parecem ter sido traçados juntos. Ambos nasceram em 21 de abril, sendo Humberto cinco anos mais jovem que a capital. Ainda menino, cruzava a estrada para visitar a cidade. “Quando me mudei para cá, foi como se tivesse vindo para a Disneylândia”, brinca.
Foi o encanto pelas ilustrações que o levou a cursar Publicidade e Propaganda na Universidade de Brasília (UnB), com a intenção de se tornar diretor de arte. “ Quadrinhos já eram parte do meu dia a dia. E, na faculdade, tive a luz de estar cercado de oportunidades e pude de fato estudá-los. Estudei até a sociologia dos quadrinhos. Tudo somente por paixão” , conta.
Humberto só foi pensar em criar um personagem próprio quando se formou, aos vinte e poucos anos, motivado pela paixão por Brasília. Depois de muito matutar e rabiscar, surgiu a ideia de um passarinho que escolheu o topo do Congresso como lar. Criou dezenas de tiras de uma vez e as guardou consigo despretensiosamente.
O destino deu um empurrão quando sua prima, a jornalista Giuliana Morrone, viu as histórias e sugeriu que ele as apresentasse ao editor de cultura do Correio Braziliense à época, Paulo Pestana. O encontro foi decisivo. Pestana leu uma tira atrás da outra e, sem hesitar, perguntou: “Você quer publicar no jornal?”. Humberto não só topou, como acatou a sugestão de nome para o personagem proposto pelo editor.
Foi assim que Humberto viu o Eixinho ganhar vida em um dos periódicos mais lidos do País. “Foi um dos primeiros personagens em quadrinhos publicados no Brasil fora do eixo Rio-São Paulo ou do exterior”, conta. O passarinho do Cerrado atraiu curiosidade e conquistou leitores. Mas nada poderia preparar Humberto para um dos maiores feitos do personagem: chegar até seus ídolos. “O Eixinho passou a ter leitores ilustres, como Ziraldo, Luis Fernando Veríssimo e Jaguar. Era como se o Mick Jagger entrasse pela porta e me tratasse como um amigo”, brinca. A relação com esses cartunistas cresceu o suficiente para os três escreverem prefácios para um livro nunca publicado do passarinho.
De Ziraldo, inclusive, recebeu até um “esporro” construtivo. O pai do Menino Maluquinho enviou um telegrama curto e direto ao publicitário: “Me liga”. O motivo da urgência? Pedir para que Humberto parasse imediatamente de desenhar com a caneta cuja marca o veterano conseguiu identificar pelo jornal. Ele obedeceu, é claro, e dali em diante passou a usar caneta nanquim, a mais recomendada para a técnica.
Quase dez anos e mais de 3,5 mil tiras depois, Humberto se viu soterrado pela rotina, pelas contas a pagar e pela profissão de publicitário. Deixou de publicar o Eixinho, guardou os nanquins e focou em seguir uma carreira frutífera, que lhe rendeu cargos em agências multinacionais, campanhas memoráveis e prêmios mundo afora. Em paralelo, silenciosamente, a retinose pigmentar avançava e o Eixinho já era uma lembrança distante.
A reinvenção de um artista
Nos últimos anos, com a popularização das redes sociais, uma pergunta passou a perseguir Humberto. Amigos, familiares, leitores antigos: todos queriam saber quando o Eixinho voltaria. “Cria uma página no Instagram”, insistiam. Depois de muita relutância, Humberto cedeu. Pediu ajuda ao filho para criar o perfil, digitalizar as tiras antigas e, no dia 21 de abril de 2024, o passarinho ressurgiu no mundo virtual. “Para minha surpresa, muita gente ainda se lembrava dele”, celebra.
À medida que via o Eixinho ganhar seguidores e despertar nostalgia com os quadrinhos originais, Humberto sentia a urgência de contar novas histórias. “Minha cabeça começou a fervilhar. Tive dez, vinte, trinta, quarenta ideias de roteiros de uma vez”, conta. O único problema é que não conseguia mais desenhar. “Eu analiso as dificuldades como um muro gigante o qual podemos perder a vida lamentando diante dele, sem perceber que talvez haja um caminho ao redor”, reflete o artista. “A solução para o meu problema é voltar a enxergar. Mas se eu me basear nisso, ficarei estacionado. Foi quando pensei: e se eu desgrudasse o Eixinho do papel?”.
Assim surgiu a ideia de vetorizar o personagem. “Sem contar a ninguém, criei um roteiro do zero e pedi a um colega para montar uma tira. Quando ficou pronta, mostrei para o meu filho e a resposta dele foi ‘pai… como é que você fez isso?!’”, compartilha, emocionado. Assim, novas tiras surgiram no perfil. “Isso deixou as pessoas ainda mais curiosas, pois sabem que eu não enxergo, então como eu estaria fazendo aquela mágica?”, diz, bem humorado.
Com toda a repercussão, o Eixinho foi descoberto por um grupo de pesquisadores de tecnologia, que se aproximou com uma proposta ousada: e se a Inteligência Artificial pudesse ajudá-lo a “voltar a desenhar”? Humberto descreveria detalhadamente quadro por quadro da tirinha, e a IA – abastecida com os vetores e o máximo de informações sobre o personagem e o artista – cria a ilustração, seguindo seus comandos. O projeto ainda está em desenvolvimento, mas os primeiros testes são animadores. Falta pouco para que Humberto consiga, de fato, ilustrar novamente suas próprias histórias.
O publicitário deixa claro que a ideia é a IA ser sua mão, jamais sua cabeça. “A ferramenta não vai roubar o meu lugar. Ela não vai criar, mas sim desenhar sob a minha ordem, com o meu texto e o meu traço. Ela me permitirá continuar” , aponta. “Foi a tecnologia que ressuscitou o Eixinho. Se não fosse por isso, ele continuaria sendo esse monte de papel antigo. E mesmo se eu tivesse quinhentas novas ideias, elas ficariam somente na minha cabeça”, analisa.
O futuro do Eixinho
O retorno do Eixinho não foi planejado, mas aconteceu. O pássaro que um dia fez seu ninho no alto do Congresso voltou a voar. E, com ele, Humberto também. “Meu único objetivo com isso tudo é relembrar e mostrar para uma nova geração esse personagem que está dentro do meu coração. Mas agora, ele é quem vai decidir para onde quer ir” , conclui.
*Escrito por Larissa Duarte
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