A baiana Astrud Gilberto foi o rosto feminino internacional da bossa nova. Era dela a voz no “The Girl from Ipanema”, megahit no planeta todo em 1964, e era ela quem aparecia na TV cantando. Também manteve uma sólida carreira no exterior, ficando quase totalmente esquecida no Brasil. País que só se lembrou dela agora, por causa de sua morte na noite de 5 de junho (o anúncio foi no dia 6). Ela tinha 83 anos e morava em Filadélfia, nos EUA.
“The Girl from Ipanema” é a versão com letra em inglês (de Norman Gimbel) para “Garota de Ipanema”, composta por Tom Jobim e Vinícius de Moraes em 1962 e gravada pela primeira vez naquele ano por Pery Ribeiro.
A versão com Astrud Gilberto abriu caminho para que a bossa nova estourasse no mundo todo e a música brasileira fosse levada realmente a sério no exterior. Influenciou o pop americano e até o rock, o gênero dominante dos anos 1960.
A gravação ganhou o Grammy de Disco do Ano. E estima-se que a composição seja a segunda mais regravada da história, atrás apenas de “Yesterday”, dos Beatles.
E “The Girl from Ipanema” transformou Astrud Gilberto em cantora profissional. Desde 1959, ela era casada com o cantor e violonista igualmente baiano João Gilberto, o homem que promoveu a revolução musical da bossa nova no Brasil.
O plano de dominação mundial da bossa nova começaria com o célebre concerto coletivo no Carnegie Hall de Nova York, em novembro de 1962. João Gilberto e Tom Jobim se destacaram. E o saxofonista americano Stan Getz, de radar ligado, chamou os dois para colaborar com ele num álbum. Gilberto com crédito de co-autor do LP, já que era cantor – Jobim não se arriscava nessa época.
Quando os brasileiros entraram no estúdio A&R de Nova York em março de 1963, Astrud era apenas a esposa que acompanhava João. Mas podia dar uma força nas versões das letras para o inglês.
Nascida em Salvador em 1940, ela era filha de um alemão professor de idiomas e uma brasileira. Com o pai, aprendeu a se virar em várias línguas. E tinha o inglês caprichado.
Stan Getz gostou de “Garota de Ipanema” com João Gilberto cantando em português, mas sabia que tinha um diamante nas mãos, comercialmente falando. Sugeriu chamar uma cantora profissional americana para cantar em inglês como contraponto a João (e transformar a canção em “The Girl from Ipanema”). João dispensou. Disse que sua mulher poderia dar conta do recado, mesmo nunca tendo cantado para valer.
A voz pequena, redonda, suave, sussurrante e encantadora nos traços de amadorismo bem controlados transformaram a gravação. No LP, que demorou um ano para ser lançado nos EUA, a faixa de abertura traz os vocais de João e de Astrud.
Semanas depois, Getz e o produtor Creed Taylor optaram por deixar “The Girl from Ipanema” mais curta para sair em compacto e tocar nas rádios. No LP, tinha mais de 5 minutos, tempo demais para as emissoras.
Na edição para single com 2:44 minutos, caiu fora o vocal de João Gilberto (o violão ficou). Sobrou só Astrud. Que não recebeu royalties nem pelo LP nem pelo compacto, apenas um pagamento de tabela de sindicato dos músicos para serviços de cantora.
Astrud se apresentou em programas da TV americana e logo estaria fazendo o mesmo na Europa em 1965. No começo, Stan Getz estava junto. Quando a brasileira começou a ter repertório próprio e lançar discos, passou a ir sozinha a esses compromissos.
Curiosamente, o casamento com João acabou nessa época. Astrud ficou com o filho João Marcelo (que, no futuro, seria contrabaixista da banda da mãe) e se manteve nos EUA. João casou-se de novo em 1965 com Miúcha (irmã de Chico Buarque) e teve uma filha em 1966: a atual cantora Bebel Gilberto.
Astrud Ingressou no clube dos artistas brasileiros radicados no exterior que têm reputação e prestígio enormes lá fora e têm suas existências quase totalmente ignoradas aqui. Como os guitarristas Bola Sete e Laurindo Almeida, os tecladistas Walter Wanderley, Sérgio Mendes e Eumir Deodato, e as cantoras Flora Purim e Eliane Elias.
Em dezembro de 1969, Astrud já reclamava da rejeição dos brasileiros – talvez por ter feito sucesso cantando em inglês – em entrevista à revista “Intervalo”, da Editora Abril. O título da matéria: “O Brasil não me aceita”.
Astrud seguiu cultuada nos EUA, na Europa e no Japão. A probabilidade de se encontrar um ou vários artigos longos sobre ela escritos no exterior nas últimas décadas é imensamente maior que encontrar um feito no Brasil.
Resta resgatar alguns momentos legais da carreira de Astrid:
- Astrud Gilberto e Stan Getz – “The Girl From Ipanema” (1964)
Acima, uma apresentação na TV americana. Abaixo, uma espécie de videoclipe, mas em filme.
- “Água de Beber” (1965)
Música do álbum de estreia “The Astrud Gilberto Album”, com Tom Jobim no violão e vocais de apoio na gravação. Ele não está no vídeo, com imagens de uma apresentação de TV de Astrud redubladas com o áudio em estéreo do LP.
- “Corcovado (Quiet Nights of Quiet Stars)” (1965)
Astrud com outro clássico da bossa nova no programa especial “Dzjes Zien à la Bossa Nova”, da TV holandesa em 1965. Ela conta com o apoio do baterista brasileiro Dom Um Romão, outro que se radicou no exterior.
- “Fly Me To The Moon” (1965)
Uma versão de primeira da música mais associada a Frank Sinatra com acompanhamento bem suingado da orquestra de jazz de Count Basie. Astrud não comete a besteira de seguir a versão de Sinatra e faz uma leitura doce. Parte de seu segundo álbum, “The Shadow of Your Smile”.
- Astrud Gilberto e Walter Wanderley – “Você Já Foi à Bahia?” (1966)
Uma deliciosa versão da música que Dorival Caymmi fez em 1944 para ser título da animação em longa-metragem de Walt Disney, estrelando Zé Carioca e Pato Donald. O álbum “A Certain Smile, A Certain Sadness” foi feito inteiramente em parceria de Astrud com o organista Walter Wanderley, que já era “americano” havia um bom tempo.
- “Historia del amor (Love Story)”
Uma bizarrice: Astrud cantando a melosa “Theme from Love Story”, do maestro Francis Lai, tema do dramalhão romântico “Love Story”, sucesso enorme nos cinemas mundiais em 1970/71. É uma apresentação num dos quatro episódios do breve programa do apresentador e coreógrafo italiano Don Lurio, exibido pela RAI italiana em 15 de julho de 1972.
- “Zigy Zigy Za” (1972)
Astrud se repaginou com o álbum “Now”, de 1972. Reuniu feras como Eumir Deodato, Ron Carter, Billy Cobham e Airto Moreira para acompanhá-la e variou bastante no repertório. Fez releituras de “Baião” (Luiz Gonzaga), “Take It Easy, my Brother Charlie” (Jorge Ben), “General da Banda” (Blecaute) e uma versão em inglês para “Travessia” (Milton Nascimento), rebatizada de “Bridges”. “Zigy Zigy Za” é a mais curiosa: uma adaptação da cantiga infantil do folclore “Escravos de Jó”, com batidas afro e toques do jazz-rock.
O álbum “Now” tem participações de Eumir Deodato, Airto Moreira, Mickey Rocker, Billy Cobham, Mike Longo, Ron Carter, entre outros. Destaque para a primeira faixa, que utiliza a adaptação de tema de domínio público brasileiro, e Bridges, versão em inglês do sucesso Travessia, de Milton Nascimento.
- “Águas de Março” (1987)
Num show no North Sea Jazz Festival em Haia, Holanda, em 11 de julho de 1987, Astrud apresenta sua versão do clássico eternizado por Elis Regina e Tom Jobim. No quarteto que a acompanha, o baixista é seu filho João Marcelo (creditado como Marcello Gilberto pelo canal World of Jazz, onde este vídeo está hospedado).
Fonte: Gizmodo