Veto da prefeitura às rodas de samba, mesmo após a liberação de casas de shows, gera insatisfação entre bambas


O cavaco, o pandeiro, o tamborim e o ritmo batido na palma da mão, que fazem a magia da roda de samba, silenciaram desde o começo da pandemia em meados de março e não têm previsão de voltar a ser ouvidos, assim como o batuque nas quadras das escolas de samba. Ao anunciar na quinta-feira (1º) a última etapa da retomada de atividades durante a pandemia, quando permitiu a reabertura das casas de shows, com limitação de público, e a volta da música ao vivo em bares, sem pista de dança, deixando de fora essas duas manifestações culturais que fazem parte do cotidiano do carioca, o prefeito Marcelo Crivella deu início a uma nova polêmica com a turma do ziriguidum. Mesmo quem acha que ainda não é hora de voltar acredita que o governante usou de dois pesos e duas medidas. Já para outros, foi preconceito com os sambistas.

— Respeito e compreendo a seriedade e a necessidade desses procedimentos (de combate da pandemia). Mas não entendo o que faz o prefeito proibir a roda de samba e permitir outros eventos. Ele está desprezando uma grande rede que emprega muitas pessoas e se tornou uma atividade turística na cidade. Tenho medo de (o samba) cair no abandono e daqui a pouco nem ter mais. Tem que haver um consenso. Parece aquela época em que (a polícia) batia em sambista. Só falta isso, porque caído ele já está —protestou o compositor Moacyr Luz, que comanda o Samba do Trabalhador, uma tradicional roda que reúne sambistas e amantes do gênero no Clube Renascença, no Andaraí, há 15 anos, e onde se apresentou pela última vez no dia 9 de março.

O compositor Noca da Portela, que aos 87 anos tem respeitado o distanciamento social por pertencer ao grupo de risco da Covid-19, não vê sentido em liberar casas de espetáculos e proibir escolas de samba de abrir suas quadras, o que poderia ser feito também com redução de capacidade, na sua opinião. Para o sambista, que já venceu sete disputas de samba-enredo na Azul e Branco de Madureira, se uma pode adotar medidas de prevenção a outra pode fazer o mesmo.

— Ou libera geral ou não libera nada. Fica parecendo preconceito contra o samba. Não vejo por que tratar diferente — queixou-se o portelense

Tia Surica, da Velha Guarda da Portela, evita polemizar. Apesar da saudade da quadra de sua escola do coração, ela acha que não é ainda o momento para abrir uma coisa nem outra.

—Vamos esperar mais um pouco. Deixa essa pandemia passar. O pior já foi, mas ainda não é hora. Vamos nos prevenir para aproveitar depois — recomendou.

O percussionista Sassá protesta: “Não está tendo igualdade”
O percussionista Sassá protesta: “Não está tendo igualdade” Foto: Ana Branco / Agência O Globo

Já quem tira sua renda do samba não aguenta mais esperar. É o caso do percussionista Anderson Santos, de 31 anos, conhecido entre os batuqueiros como Sassá, integrante da roda de samba da Pedra do Sal, que além de cariocas atrai turistas de todo o Brasil e até do exterior. Antes da pandemia ele fazia até 11 apresentações semanais, incluindo os outros eventos.

Sassá ainda dava aulas de música e participava de gravações com outros artistas. Aí veio o coronavírus e a fonte secou. A situação só não ficou pior porque contou, nesse período, com o auxílio emergencial do governo e com o salário da mulher, que trabalha com Recursos Humanos.

— Reconheço que é complicado não ter aglomeração (numa roda de samba) mas pelo menos é ao ar livre. Estamos na rua e não num ambiente fechado. É claro que a gente tem preocupação com a pandemia, mas também precisamos sobreviver. Meu sentimento é de insatisfação. Se liberou para um por que não fazer o mesmo com o outro? Estão jogando a gente para o canto. Não está tendo igualdade — cobrou o músico.

Jefferson Oliveira, o DJ Jeffinho, um dos organizadores da roda da Pedra do Sal, também acredita que houve discriminação. Sua preocupação não é apenas com os músicos, mas também com outros trabalhadores que tiram o sustento do evento, como os barraqueiros, que vendem bebidas e tira-gosto, além de outros envolvidos na produção, como técnicos de som.

— Fomos os primeiros a parar e vamos ser os últimos a voltar. Como ficam as famílias que dependem disso para sobreviver? O auxílio emergencial do governo não cobre (as despesas) e ainda atrasa. Se já estão flexibilizando para casas de show e outros estabelecimentos, por que não fazer o mesmo com um evento que é ao ar livre? Aglomeração por aglomeração a gente vê todos os dias nos ônibus, nas portas dos bancos e nas praias. A gente está surpreso porque esperávamos que fôssemos voltar agora — reclamou.

Ronaldo Felipe da Silva, diretor do Cacique de Ramos, que em 2021 completa 60 anos, é cauteloso. A roda de samba que acontece aos domingos, sempre com entrada franca, é uma das mais antigas e tradicionais da cidade, atraindo pelo menos mil pessoas. Não é raro ver nas imediações da quadra em Ramos, ônibus estacionados que trazem turistas de outras cidades e estados. Por isso, para ele, o momento é de esperar.

—A pandemia ainda não acabou. A gente sabe da importância dos eventos na vida das pessoas. Tem gente que vive disso. Mas, ainda está perigoso. Ainda não é o momento — ponderou.

Na opinião do carnavalesco da Mangueira, Leandro Vieira, o grande problema da flexibilização das atividades é a falta de fiscalização pela prefeitura.

— A gente percebe que as pessoas têm dificuldade de cumprir determinações básicas de isolamento e a prefeitura não fiscaliza — criticou.

A presidente da Velha Guarda da Verde e Rosa Ermenegilda Dias Moreira, a dona Gilda, faz coro com o carnavalesco:

— Não é hora de voltar para ninguém, porque pelo noticiário a gente vê que os casos de contaminação e de mortes ainda são crescentes. Está prevalecendo o dinheiro. A roda tem que rodar, mas não sou eu quem foi eleita para decidir isso.

Assim como o pessoal das escolas de samba, que enfrenta dificuldades com o fechamento das quadras e dos barracões, os músicos das rodas de samba integram um dos grupos mais atingidos economicamente pela pandemia do coronavírus, por exercerem uma atividade que é considerada como geradora de aglomeração. Um levantamento da prefeitura aponta para a existência de 213 rodas de samba em toda a cidade, que geram trabalho e renda para cerca de 4 mil músicos.

As rodas de samba integram o Calendário Oficial das Rodas de Samba Carioca, uma resolução conjunta assinada pelas secretarias de Cultura, Fazenda e Desenvolvimento, Emprego e Inovação, que regulamenta o decreto 43.423, de julho de 2017. A iniciativa teve o objetivo de dispensar a necessidade de alvará e estabelecer locais, datas e horários para esse tipo de evento.

Sobre o questionamento a respeito de poder casa de shows e não poder roda de samba, a prefeitura respondeu apenas que “seguem vedadas rodas de samba e atividades em quadras de escolas de samba. A previsão para esses espaços é que sejam retomados no chamado período conservador, ainda sem data definida.”





Fonte: G1