‘total desrespeito ao ser humano’


RIO — A Justiça do Rio determinou nesta terça-feira o fechamento do abrigo Centro Integrado à Criança e ao Adolescente Portadores de Deficiência Professor Almir Ribeiro Madeira (CICAPD-PARM), localizado em Niterói. A ação foi motivada, segundo o MP, após uma fiscalização na unidade constatar violações de direitos humanos, como o uso de medicação psicotrópica com a finalidade de contenção químicas dos acolhidos. Atualmente há 22 pessoas no abrigo, sendo 20 adultos.

Em sua decisão, a juíza Rhohemara dos Santos Carvalho Arce Marques, titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca de Niterói, ordenou o fechamento imediato da unidade e a transferência dos acolhidos para locais que atendam seu perfil. Nesta terça O GLOBO mostrou que após uma fiscalização no local, o Ministério público constatou que 90% dos acolhidos eram adultos, apesar de ser uma unidade para crianças e adolescentes.

“Causa, no mínimo, espanto, a forma de administração da Casa de Acolhimento Almir Madeira, pelo total desrespeito ao Ser Humano, principalmente, quanto àqueles que necessitam de atenção especial devido a alguma deficiência que possuem; é, na verdade, a completa falta de Humanidade e cuidado com o próximo, sendo tal proceder inadmissível, notadamente, quando se trata de instituição que deve fazer, justamente, o oposto e cuidar dos acolhidos em ambiente o mais parecido possível com uma residência, focando na melhoria das condições de vida e saúde, e não um local de cárcere privado e de ócio, sem tentativa de reabilitação, reinserção familiar e desinstitucionalização”, diz trecho da decisão.

‘Amarra e fica duas horas’, relata acolhido

São réus na ação o Governo do Estado do Rio, tendo corresponsabilidade da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA/RJ) e da Associação das Crianças Excepcionais de Nova Iguaçu (ACENI), cogestoras do abrigo. Também é ré a prefeitura de Niterói, pelo MP considerar que é dever do município acompanhar os acolhidos pela rede de saúde local e de assistência social.

A ação protocolada pela 1ª Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude de Niterói e da 2ª Promotoria de Justiça de Família de Niterói narra que durante uma vistoria do Grupo Técnico Especializado (Gate) acolhidos relataram que as contenções química e física são utilizadas como forma de disciplina na unidade. O MP destaca que há um “uso abusivo e excessivo de medicamentos”:

“Amarra e fica duas horas. Tem vezes que é o dia inteiro”, relatou um dos acolhidos aos técnicos do Ministério Público.

Os promotores ainda afirmam que na enfermaria do abrigo há uma anotação fixada em um mural com a indicação de mediação psicotrópica intitulada de “SOS dos acolhidos”. No livro de enfermagem da unidade ainda há registro de 17 ocorrências em que a aplicação do “SOS” foi feita entre 1 de novembro a 20 de dezembro de 2021 por “agitação” ou “agressividade”.

Segundo a ação, atas de reuniões com a Assistência Social do Município de Niterói mostram que o município identificou, por mais de uma vez, que os usuários do serviço eram “dopados” e que a prescrição medicamentosa era excessiva.

“Tal prescrição nunca poderia ser genérica e comum a todos os acolhidos, sem avaliação individualizada por médico psiquiatra. Trata-se de gravíssima violação de direitos, de conhecimento dos réus, que se omitiram durante todos esses anos”, diz trecho da ação do MP.

Óbitos omitidos

A investigação descobriu que desde o final de 2020 três óbitos e uma tentativa de suicídio ocorreram no abrigo, mas somente uma morte foi notificada para as autoridades competentes. Em 2019, os promotores ainda destacam que um adolescente foi internado no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba para desintoxicação por uso excessivo de medicamentos, “cuja dosagem era, à época, maior que a recomendada para um adulto”

“As circunstancias narradas de maus-tratos, contenção física e química, uso excessivo de medicação, prescrição genérica e indiscriminada de SOS levantam fundadas suspeitas sobre a causa das mortes”, diz parte do documento.

Abrigo para crianças tem 90% de adultos

O Ministério Público relata que a Organização Social Aceni, cogestora do abrigo, não possui experiência na prestação do serviço de acolhimento institucional de crianças e adolescentes. Associação venceu um certame de R$ 5,2 milhões para gerir a unidade por 32 meses. O contrato foi assinado no fim de 2020 e vence em julho de 2023.

A unidade Professor Almir Ribeiro deveria ser exclusiva para atender crianças e adolescentes, mas o MP afirma que 90% dos acolhidos são adultos e há atualmente apenas dois adolescentes — um deles prestes a completar a maioridade. Os promotores ainda apontam que entre os adultos no abrigo foi identificado que dois são acolhidos há 30 anos, três há mais de 20 anos, outros três há mais de 15 anos, e mais dez pessoas institucionalizadas há aproximadamente 10 anos.

Durante a fiscalização o Gate ainda constatou a falta de oferta de atividades regulares e diversas na unidade ou fora dela, estando os acolhidos o dia inteiro dentro de suas acomodações, número insuficiente de recursos humanos, aquém das exigências legais e a falta de planejamento técnico.

Além de pedir o fechamento da unidade, o MP também pede a transferência dos abrigados para seus municípios de origem e em entidades de acolhimento recomendadas para cada perfil.

A FIA afirma em nota (veja a íntegra no final da reportagem) que ainda não foi notificada da ação, que o abrigo possui atendimento individualizado por meio de equipe técnica qualificada e os acolhidos participam de atividades lúdicas dentro dos protocolos de segurança contra a Covid-19.

A Aceni também informou em nota (veja a íntegra no final da reportagem) que não tem conhecimento da ação e presta serviços desde 1995.

Em nota (veja a íntegra no final da reportagem) a prefeitura de Niterói afirmou que não foi notificada e vai se pronunciar nos autos do processo. Segundo a prefeitura, o município “tem um papel de apoio técnico quando identificada a necessidade ou por solicitação” e a ação da prefeitura “se dará no trabalho social de localização de familiares (das crianças que cresceram na instituição e hoje são adultos), reinserção nos lares (no caso da família poder receber essas pessoas de volta em casa) ou encaminhamento a outro abrigo (quando da perda total dos vínculos familiares).”

Procurada, a secretaria estadual de Direitos Humanos — órgão a que a Fundação para a Infância e Adolescência é vinculada — não respondeu os questionamentos.

Confira os posicionamentos na íntegra:

FIA:

“A Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) esclarece que não foi notificada sobre qualquer ação do Ministério Público (MP). O CICAPD Almir Madeira acolhe crianças e adolescentes com múltiplas deficiências e transtornos neurológicos com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, que são encaminhados por determinação judicial das varas da infância e juventude, responsáveis pelo acompanhamento.

O equipamento oferece aos acolhidos atendimento individualizado por meio de uma equipe técnica qualificada: cuidadores, técnicos de enfermagem, enfermeiros, médico, fisioterapeuta, psicólogo, fonoaudiólogo, assistente social, nutricionista e cozinheiros. Além destes, também são atendidos pelos profissionais de saúde referenciados do CAPSI, responsáveis pela prescrição dos medicamentos individualizados.

Na educação, todos os nossos acolhidos em condições de escolaridade frequentam a escola, bem como realizam regularmente atividades externas de informática, dança e atividades lúdicas, como também participam de passeios dentro dos protocolos de segurança contra a Covid-19. Vale destacar também que, de forma conjunta com a rede CREAS, CRAS, CAPS a equipe técnica do CICAPD Almir Madeira trabalha com a reinserção familiar, com algumas já realizadas neste ano de 2022 e outras em processo de reinserção.”

Aceni:

“A Aceni informa que não tem conhecimento de qualquer ação judicial, somos uma Instituição atuante desde 1995, sempre buscando o melhor atendimento, individualizado à crianças e adolescentes com deficiência, e aí longo do tempo, vimos possuir relevantes serviços prestados à sociedade, conforme consta em nossa missão institucional.”

Prefeitura de Niterói:

“A Secretaria Municipal de Assistência Social e Economia Solidária informa que tem um papel de apoio técnico quando identificada a necessidade ou por solicitação, já que a gestão do Centro Integrado à Criança e ao Adolescente Portadores de Deficiência Professor Almir Ribeiro Madeira (CICAPD-PARM) é de responsabilidade do Estado. Em casos de irregularidades identificadas pela equipe, é de praxe que sejam notificadas aos órgãos competentes para fiscalização. Sobre as ocorrências narradas pelo MP na ação, apenas a gestão estadual pode prestar informações, como dito.

É importante ressaltar que não cabe ao município a interdição do espaço. A ação da SMASES se dará no trabalho social de localização de familiares (das crianças que cresceram na instituição e hoje são adultos), reinserção nos lares (no caso da família poder receber essas pessoas de volta em casa) ou encaminhamento a outro abrigo (quando da perda total dos vínculos familiares).

A Prefeitura de Niterói não foi notificada a respeito da ação. A Procuradoria Geral do Município (PGM) vai se pronunciar nos autos do processo.”





Fonte: G1