“Não são números. São pessoas queridas e íntimas. Podem pensar que consigo não vai acontecer nada. Mas pode acontecer com a pessoa que você mais ama”. A súplica é de um pai que há quase um ano tenta superar a perda de um filho. No dia 18 de abril de 2020, Hugo Dutra do Nascimento Silva foi uma das vítimas da Covid-19 no Rio de Janeiro. Tinha só 25 anos, era pai do pequeno Arthur, então com 5 anos, e filho do meio do taxista Marcio Antônio do Nascimento Silva, de 56. Além de viver o luto, vencer a depressão e a ansiedade, o pai reaprendeu a sorrir. O destino o colocou trabalhando próximo de onde enterrou dois de seus quatro filhos. Dezesseis anos antes da partida de Hugo, o taxista perdeu um dos filhos gêmeos, Gabriel, de sete meses. Com a crise no setor de transporte por causa da pandemia, ele se viu obrigado a se reinventar e passou a fazer entregas de supermercado pelo delivery com o táxi. Seu principal ponto é em um estabelecimento em frente ao Cemitério São João Batista, em Botafogo. Foi lá que chorou e se despediu dos seus bens preciosos. Duas dores que não se apagam, mas se confortam com o amor recebido pela família e pelos dois meninos que lhe dão todo o suporte emocional.
Há alguns meses na nova função, Marcio Antônio nunca olha para o sepulcrário. Às vésperas de completar um ano da morte de Hugo, ele vestiu uma camiseta branca com uma foto tirada ao lado do filho em um centro de dança de salão, uma paixão dividida pelos dois. Na imagem, o jovem aparece com um sorriso largo e um rosto iluminado. A frase “amor e paz” foi inspirada no status escrito por Hugo no seu WhatsApp, algo que o pai entendeu como um sinal. O taxista, então, olha para o outro lado da rua, vê as sepulturas que ali estão no espaço, respira forte e afirma que precisa “conviver com isso”.
— Meu ponto é aqui, porque tenho conforto e posso trabalhar mais. Mas tenho que conviver com isso, tenho que conviver… Estou aqui, agora, e conseguindo olhar para lá, algo que nunca faço — diz o pai, com os olhos marejados. — Essa semana foi uma vitória muito grande, porque estou aceitando mais. Sei que tenho que fazer essa reforma, que é minha, íntima. O mundo não é fácil. Só existe um caminho: o do amor e da solidariedade.
O estado do Rio tem mais de 39,5 mil mortes causadas pelo Coronavírus. Os descumprimentos das medidas restritivas e as aglomerações são vistas como egoísmo por seu Marcio Antônio. A espera é por uma empatia da sociedade. Da sua parte, ele afirma que tenta sempre fazer as pessoas pensarem no que aconteceu com o seu filho. O objetivo é claro: salvar outras vidas e evitar o choro de muitas famílias.
Ele afirma que não consegue e nunca vai conseguir esquecer Hugo. Lembra que sua passagem com ele nesses 25 anos foi a mais bela que existiu. Mas ao resgatar os últimos dias com o jovem ainda vivo, seu coração aperta e as lágrimas correm quando desabafa.
— Sempre me coloco tentando fazer as pessoas pensarem no que aconteceu com o meu filho. Isso me ajuda a resistir. É preciso ter empatia. Se isso aconteceu com o meu filho é porque tinha um propósito. No caso, o de ajudar. A última coisa que eu pude dar para ele como pai foi um tchau — diz, enquanto chora.
— Eu gritei para ele ver na porta da sala vermelha da UPA. Foi a última vez que o vi vivo. Horas depois, ele me mandou a última mensagem no celular: “Pai, desculpa. Eu acho que não vou conseguir”. Enviei áudios mandando força. Graças a Deus, ele conseguiu ouvir. Sempre mantive a esperança. Não imaginei, em nenhum momento, que ele iria morrer.
Perda de um primo e irmã internada
Hugo começou a sentir os primeiros sintomas no dia 3 de abril, mas só foi internado em 8 de abril na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Copacabana, de onde acabou sendo transferido para o Hospital municipal Ronaldo Gazzolla, em Acari, unidade de referência no tratamento da Covid-19. Após uma piora no estado de saúde, o jovem faleceu dez dias depois, no dia 18 de abril.
Além da dor da perda do filho, o taxista também perdeu um primo, que era enfermeiro, para Covid-19. Sua irmã está internada há uma semana no Hemorio, no Centro, lutando para sobreviver. Seu quadro é estável grave. Além deles, o próprio taxista, sua atual mulher, os sogros, o cunhado e a mãe de Hugo também tiveram a doença, mas se recuperaram. Hoje, seu Marcio Antônio está vacinado, por ser de uma comunidade quilombola.
— É uma saga difícil. Nem todos têm estrutura para aguentar. Quando fui reconhecer o corpo, eu rezei. Não consegui nem olhar direito. No meio do corredor, voltei e fui me despedir. Aquilo ali é doloroso. Você não pode dar um abraço, um beijo e nem vestir a pessoa. É um martírio até mesmo para enterrar, com uma fila de quatro horas de esperar e só oito pessoas. É um dor que as pessoas precisam entender e ter mais empatia — clama.
Sua história ganhou repercussão internacional em junho de 2020, quase dois meses após a morte de Hugo. O taxista se deparou com uma cena que o revoltou. Um homem derrubou, aos berros, as cruzes inseridas na areia da Praia de Copacabana pela ONG Rio de Paz, que simbolizavam as covas rasas. Era um protesto pelas mortes de centenas de pessoas pela Covid-19. Mesmo no luto e ferido pela perda do filho, ele foi até a orla e recolocou cada uma das placas arrancadas.
— Quando vi ele começar a derrubar, eu não acreditei. A minha intenção era só colocar de volta, mas ele queria me ofender. Em nenhum momento, o impedi de tirar. Não estava com raiva, estava indignado. Q quantas vezes ele tirasse as cruzes, eu colocaria de volta. Eu só queria respeito pelo meu filho e por aquelas vidas. Meu ato foi de amor — relembra.
Fonte: G1