Sob trauma de operação no Jacarezinho que deixou 28 mortos, jovens têm ajuda psicológica para chegar à universidade


O estudante Jean Maurieli, de 21 anos, tenta retomar a rotina de estudos para o vestibular da Uerj, que será realizado no dia 18 do mês que vem, e também de preparo para o Enem, no fim do ano. Morador da favela do Jacarezinho, na Zona Norte, ele sentiu o sonho de cursar Direito em uma universidade pública ser atravessado pela ação policial mais letal da história, que deixou 28 mortos, em maio. Desde então, Jean e seus colegas do pré-vestibular comunitário NICA-Jacarezinho viram as crises de ansiedade e a insegurança se somarem às dificuldades de aprovação em um curso universitário durante a pandemia da Covid-19.

Jean viu a rotina de estudos ser abalada pela operação que deixou 28 mortos mês passado
Jean viu a rotina de estudos ser abalada pela operação que deixou 28 mortos mês passado Foto: Hermes de Paula/Agência O Globo

As imagens das ruas da comunidade tomadas por sangue teimam em voltar à mente, enquanto estudantes convivem com a falta de sinal de internet para acompanhar as aulas e enfrentam problemas financeiros. O impacto da violência na rotina dos vestibulandos fez com que o projeto educacional buscasse parceria com uma ONG de psicólogos, para que a influência sobre os estudos fosse minimizada. Ainda assim, Jean diz que os efeitos da última operação são incontornáveis.

— Naquele dia, não consegui estudar por medo. Minha família ficou confinada em casa, ouvindo tiros. A toda hora vinham atualizações do que estava acontecendo nas ruas. No dia seguinte, descobri que um conhecido estava entre as vítimas. É difícil não lembrar daquele dia, é difícil que não venha à memória. Só retomei a rotina de estudos uma semana depois. Enquanto eu não consigo estudar, um concorrente está se dedicando aos livros — desabafa o jovem.

Ele está entre os 16 alunos matriculados no projeto educacional gratuito, localizado no Jacarezinho. Em seu terceiro ano de atuação, o NICA já viu dez vestibulandos chegarem ao ensino superior. O número merece ser comemorado, mas ainda é inferior aos índices de evasão.

No ano passado, dos 30 inscritos, apenas seis continuaram matriculados até o fim. A violência e a pandemia têm sido os principais motivos para que os estudantes abram mão do sonho de cursar uma universidade, de acordo com o coordenador do projeto, Luan Ribeiro:

— É duro transmitir conhecimento a pessoas que passaram por esse tipo de abalo psicológico. Pense em como é ver rastro de sangue a caminho dos estudos, depois de ouvir horas de tiroteio, confinado em ambientes pequenos, com seus familiares. Isso breca os sonhos dessas pessoas. E, se eles não sonharem, como vão voar alto? O psicológico encurrala as pessoas, a violência impede a realização de sonhos.

Atendimentos psicológicos semanais

Recentemente, os atendimentos psicológicos aos alunos do NICA precisaram ser intensificados. Se, inicialmente, as consultas com profissionais voluntários eram feitas a cada quinze dias, agora os encontros são semanais. Os profissionais do coletivo Favela-Terapia realizam rodas com dinâmicas para os jovens. Uma das integrantes do grupo de psicólogos, Grazielle Nogueira afirma que, em muitos casos, os profissionais se deparam com quadros de depressão e ansiedade causados pela violência. Ela conta que também é necessário trabalhar a “naturalização da violência sofrida”:

— Como os atendimentos são coletivos, muitos deles conseguem trocar experiências e se encorajar, a partir da indentificação com o outro. Mas também precisamos lutar contra essa desmotivação, essa sensação que o jovem periférico muitas vezes carrega de que é normal passar por violência policial no seu dia a dia, ou de que ele não é capaz de ocupar espaços acadêmicos. É um trabalho muito sensível, acima de tudo de ensinar que têm direito a ocupar espaços e precisam ser respeitados.

Luan diz que a pandemia agrava ainda mais esse sentimento de “impotência”:

— A crise financeira das famílias faz com que muito jovens larguem os estudos e recorram a subempregos. Eles não veem sentido em seguir lutando em uma batalha na qual são tão vulneráveis e, em muito casos, abandonam. É importante que todos se sintam acolhidos, pertencentes a um grupo que luta pelos mesmos sonhos. Quando eu falo no meu sonho, enquanto professor, só consigo pensar no dia em que o trabalho voluntário no Jacarezinho será capitaneado por esses jovens que através do NICA chegararam ao ensino superior. Os exemplos e a representatividade são fundamentais.

Luan conta que de 30 inscritos, só seis chegaram ao fim do ano em 2020 por conta da pandemia e da violência
Luan conta que de 30 inscritos, só seis chegaram ao fim do ano em 2020 por conta da pandemia e da violência Foto: Hermes de Paula/Agência O Globo





Fonte: G1