Sistema público de apoio a mulheres vítimas de violência enfrenta redução de pessoal, estrutura precária e corte de salários


Se dependesse da rede de atendimento a mulheres vítimas de violência oferecida no estado do Rio, Alex — personagem de 25 anos que na série da Netflix “Maid” (“Criada”, em português) vem comovendo o público em sua jornada para fugir com a filha de 3 anos de um relacionamento abusivo —, encontraria ainda mais obstáculos do que no burocrático país norte-americano. A produção mostra a importância do apoio institucional às vítimas para que consigam reconstruir suas vidas. Por aqui, equipamentos de atendimento à mulher vêm passando por um processo de desmonte ao longo dos anos, denunciam profissionais dos centros que assistem à população feminina e o Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim).

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Equipes cada vez menores, unidades que fecharam, redução de equipes e até transferência do atendimento para espaços menores são alguns dos problemas enfrentados por quem tenta escapar de uma vida já precária e muitas vezes financeiramente dependente do agressor.

Cada vez mais sobrecarregadas diante do aumento exponencial de procura por atendimento no ano passado e do corte gradual de pessoal, a dedicação das funcionárias que restaram nessas unidades só no ano passado fez a diferença na vida de 2.080 mulheres como Alex. X., de 32 anos, é uma delas. Após uma tentativa de estupro pelo então marido, em setembro de 2020, ela buscou atendimento no Centro Integrado de Atendimento à Mulher (Ciam) Baixada, em Nova Iguaçu. Assim como a protagonista da série, ela fugiu de um relacionamento abusivo e agora busca um emprego para criar os dois filhos. A diferença é que tem apoio dos pais. Hoje, tem atendimento psicológico no Ciam:

— Fiquei em estado de choque na época, e uma prima falou para eu buscar atendimento com psicólogo. Se eu não tivesse chegado ao Ciam, não teria tido coragem de começar um tratamento. Lá, além de atendimento psicológico, tenho orientação. Elas auxiliam em tudo.

Inaugurado em 2008, o Ciam Baixada tinha uma sede no Bairro da Luz que contava até com auditório e capacitação profissional para as mulheres atendidas. Em novembro de 2017, o espaço foi fechado e os atendimentos passaram a ser feitos na 58ª DP (Posse). O imóvel ficou abandonado e foi depredado. No fim de 2017, a ONG Fama ocupou e revitalizou o espaço com cursos gratuitos e oferecendo espetáculos teatrais. Mas os artistas deixaram o imóvel em maio de 2019, após pedido da Subsecretaria estadual de Políticas para Mulheres, e a estrutura voltou a ser depredada. Hoje o Ciam Baixada realiza os atendimentos na Rua Terezinha Pinto, num imóvel no Centro de Nova Iguaçu que, segundo ex-funcionários, é cedido pela prefeitura.

— Quando o atendimento foi para a 58ª DP, como a mulher se sentiria acolhida naquele lugar? Os atendimentos reduziram bastante naquela época. Mas hoje o Ciam Baixada se resume a estar num espaço de dois cômodos cedido pela prefeitura. Quando precisam, utilizam o auditório emprestado da Superintendência de Políticas Públicas para as Mulheres do município — contou uma ex-funcionária que preferiu não se identificar.

Sede do Ciam Baixada, inaugurada no Bairro da Luz, em Nova Iguaçu, foi fechada. Artistas promoveram intervenções culturais no espaço por um período
Sede do Ciam Baixada, inaugurada no Bairro da Luz, em Nova Iguaçu, foi fechada. Artistas promoveram intervenções culturais no espaço por um período Foto: Cléber Júnior / Agência O Globo

Não foi só a estrutura que ficou menor. A equipe também diminuiu. No Bairro da Luz, o Ciam Baixada contava com cerca de 20 funcionários. Hoje são cinco profissionais.

— São cinco pessoas para dar conta de muita coisa. É uma estrutura que não é adequada. O Ciam Baixada é um polo que atende a 13 municípios — acrescentou a ex-funcionária.

A redução de equipes foi a mesma nos três equipamentos estaduais destinados às mulheres no Rio e Grande Rio. O Ciam Baixada e o Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) Queimados dividem a mesma advogada, segundo relatos das profissionais. Primeiro do estado, o Ciam Márcia Lyra, no Centro do Rio, criado em 2000, já teve uma equipe de 30 pessoas. Hoje tem menos apenas oito.

— Gradativamente, de 2014 para cá, tem ocorrido um desmonte de toda política pública de direitos humanos da mulher, sobretudo nos serviços de atendimento de enfrentamento de violência contra a mulher — afirmou outra funcionária.

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No Ceam Queimados, uma profissional foi exonerada em julho deste ano e só soube quando não chegou o pagamento, em agosto. Ela recebeu o proporcional ao mês de julho em setembro. Com a promessa de que seria readmitida, segue trabalhando, mas sem receber salário, contou uma profissional:

— É um desrespeito, porque é uma Secretaria de Direitos Humanos. Como fazem isso com uma mulher? A orientação da gestão é que continuem trabalhando porque a situação vai se resolver.

A Casa da Mulher de Manguinhos foi fechada no início do ano passado e não há previsão de reabertura, segundo o estado. Com equipe menor e comprometimento dos equipamentos, o atendimento ficou fragilizado, lembrou outra funcionária:

— Houve fragilidade no atendimento. As mulheres não deixaram de procurar os serviços, e as técnicas ficaram sobrecarregadas. Na pandemia, elas se desdobraram com seus telefones particulares para poder garantir atendimentos.

Redução de salários

As equipes que atuam nesses centros recebeu mais um golpe no último mês, quando viram que o salário havia sido reduzido: caiu de R$ 2.208 para 1.193 (advogadas, psicólogas, assistentes sociais) e de R$ 1.400 para R$ 1.193 (equipe administrativa).

A presidente do Cedim, Edna Calheiros, disse que a redução foi feita sem qualquer comunicação prévia:

— (As funcionárias) souberam pelo portal da transparência. Vimos que o mesmo ocorreu com vários técnicos de equipamentos que atendem mulheres na ponta e de conselhos.

X. teme que os cortes de salários e de equipe afetem o atendimento:

— É triste saber que estão com salário reduzido. Pelo trabalho que desenvolvem, deveriam ser muito bem-remuneradas. A atenção que dispensam para a gente é essencial. Nem sei o que seria se perdesse qualquer atendimento no Ciam.

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Para a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Alerj, a deputada estadual Enfermeira Rejane (PCdoB), há um descaso do governo com os serviços oferecidos:

— Os equipamentos de atendimento a mulheres já vinham em estado precário há muito tempo. O objetivo do governo é trancar a porta, enterrar de vez o atendimento. Tem funcionário que não recebe há três meses. Mesmo assim, estão se dedicando.

Com exceção do de Queimados, os outros dois centros que atuam na região metropolitana tiveram aumento no número de atendimentos. No Ciam Baixada, o número cresceu 476% entre 2019 e 2020. Já no Márcia Lyra, o aumento foi de 12,4%.

— Há uma sobrecarga das profissionais porque os atendimentos continuam e são feitos mesmo com as reduções de equipe e de salário — afirmou uma funcionária.

Além dos Ciams Baixada e Márcia Lyra e do Ceam Queimados, há centros de atendimento para mulheres em Japeri, Natividade, Itaguaí, Três Rios, Mendes, Miguel Pereira. Esses equipamentos, no entanto, segundo funcionários, são municipais, e a maioria ou todos os profissionais são pagos pelas respectivas prefeituras.

Quando a mulher corre risco de vida ou de agravamento da violência, recebe o acolhimento de proteção em abrigos sigilosos que só podem ser acessados pelos Ciams e Ceams. Quando não há esse risco, é feito o acolhimento social. Os Ciams e Ceams fazem articulação com serviços das assistências sociais municipais.

Em 2020, alta de 474% nos atendimentos

A Secretaria estadual de de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos destacou que o Ciam Baixada é referência em atendimento a mulheres vítimas de violência na região e que, em 2020, realizou 2.080 atendimentos. O número representa alta de 474% em relação a 2019. Este ano, só no primeiro semestre, o número superou o total registrado em 2020, afirmou a secretaria, que negou redução de equipe nos Ciams e Ceams do estado.

Em nota, a pasta informou que o Ciam Baixada funciona em modelo de parceria entre o governo do estado e a Prefeitura de Nova Iguaçu e que o equipamento está temporariamente no imóvel cedido pela prefeitura. O endereço definitivo, na Praça Castro Alves, também é do município e está em processo de licitação para ser reformado.

A pasta afirmou que os equipamentos seguem o modelo de “Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência” proposto pelo governo federal, que orienta a formação de equipe com uma profissional para cada tipo de atendimento: jurídico, social e psicológico.

Sobre a profissional do Ceam Queimados, disse apenas que ela foi exonerada em agosto. Sobre a redução salarial, explicou que a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos estuda formas de viabilizar a valorização salarial das profissionais que atuam nos Centros Integrados/Especializados de Atendimento à Mulher e ressaltou que as profissionais são contratadas sob regime jurídico de nomeação.

Os Centros Integrados ou Especializados de Atendimento à Mulher (Ciam e Ceam) em outros municípios, diz, têm atendimento viabilizado por parcerias entre estado e prefeituras. “Esse modelo é adotado desde o começo do programa, há duas décadas, e possibilitou sua expansão nos últimos três anos, quando o número de Centros cresceu de três unidades para nove”, afirma.

Atualmente, segundo a secretaria, a rede é composta pelo Ciam Márcia Lyra, no Centro do Rio; Ciam Baixada, em Nova Iguaçu; Ceam Queimados; Ceam Itaguaí; Ceam Natividade; Ceam Japeri; Ceam Mendes; Ceam Três Rios; e a Casa do Direito da Mulher Daniella Perez, em Miguel Pereira.

Os custos com funcionários são compartilhados entre esferas estadual e municipal, com exceção do Ciam Márcia Lyra e do Ciam Baixada, cujos custos com pessoal são integralmente bancados pelo estado, e o Ceam de Mendes, onde a prefeitura local custeia toda a folha de pagamento.





Fonte: G1