Rio de Paz faz 15 anos e ganha documentário


Era um sábado de verão, em uma das praias mais famosas do mundo, mas, daquela vez, a paisagem de Copacabana iria além do sol e do mar. Entre as ondas e o calçadão centenário, 700 cruzes pretas encravadas na areia viraram, em poucas horas, um símbolo da violência que assolava o Rio, ganhando manchetes mundo afora.

Impactado, o uruguaio Guillermo Planel, radicado no Brasil há cinco décadas, correu para ver de perto a força do cenário composto pelo ainda anônimo pastor e teólogo Antonio Carlos Costa. Passados 15 anos daquele 17 de março de 2007, Planel garante que, ainda hoje, tem viva nos olhos a imagem que encontrou. E é essa potência que ele levou para o documentário “A estética da luta”, sobre a trajetória da ONG Rio de Paz, que teve nas cruzes de Copacabana seu primeiro grande ato de protesto.

A equipe do filme está negociando a exibição da obra com diferentes plataformas de streaming
A equipe do filme está negociando a exibição da obra com diferentes plataformas de streaming Foto: Reprodução

Desde que se conheceram na fundação da organização, o diretor e Antonio Carlos reencontraram-se várias vezes, até que se tornaram próximos. Estiveram juntos nas manifestações de 2013 e em ações que lembravam as vítimas da Covid-19, entre outros momentos intensos da história fluminense recente. A ideia de transformar a convivência em filme partiu de um amigo em comum, no segundo semestre do ano passado, quando o aniversário de uma década e meia da ONG já se aproximava.

— Ele perguntou: “E se fizermos alguma coisa?” Eu me empolguei de cara. Era uma trajetória que queria mostrar e que conto sob meu ponto de vista, como testemunha desse caminho, numa obra autoral. Após o primeiro papo, foram exatos nove meses até nascer, ainda está ali, na maternidade — brinca Guillermo, que dirigiu outros 16 documentários, como o conceituado “Abaixando a máquina”, sobre o fotojornalismo policial carioca. — Um colega falou esses dias que sempre digo que meu último filme é o melhor. Mas esse é, de fato. Estou orgulhoso.

Em vez de pastor, ativista

“Porque os direitos humanos não têm lado”, diz uma espécie de slogan do documentário que resume um pensamento pregado à exaustão por Antonio Carlos. A repetição não bastou para que a ideia encontrasse eco suficiente na Igreja Presbiteriana da Barra da Tijuca, onde ele era responsável pelo trabalho pastoral. A relação não resistiu a críticas feitas pelo religioso ao governo federal em determinados campos e passaram a ser vistas como posicionamento político.

— As perseguições mais duras que sofri na vida, e não foram poucas, tiveram a assinatura de alguns evangélicos, que começaram a me considerar inclusive comunista. Só que os valores que defendo são essencialmente cristãos. Vou sempre me colocar ao lado do pobre, daquele que sofre, dos que passam por violações de direitos. Se me enxergam comunista por isso, tomo como elogio ao comunismo e crítica ao cristianismo. É um contrassenso — lamenta Antonio, que acabou se afastando do templo para “não incomodar mais aquelas pessoas”. — Optei por deixar de ser pastor e me dedicar ao ativismo e à pregação, sim, mas de viés social, sem estar numa igreja.

Companhia na nova caminhada, agora de dedicação exclusiva, não há de faltar. Nos cálculos do pastor — ou melhor, do ativista —, cerca de cinco mil voluntários já participaram de ações coordenadas pelo Rio de Paz, que ao longo dos anos passou a realizar intervenções em outros estados e até no exterior. Em fevereiro de 2014, por exemplo, bolas pintadas com cruzes vermelhas foram levadas até a sede da Fifa, na Suíça, em uma cobrança por mais transparência nos gastos relativos à Copa do Mundo que, meses depois, seria realizada no Brasil:

— Foi até curioso, porque ganhamos a adesão de suíços que conheciam o nosso trabalho. Já vi gente do mundo todo se inspirando no nosso estilo, com protestos voltados para essa potência visual. Isso nos deixa muito honrados.

Antonio Carlos assegura que o grupo é capaz, atualmente, de realizar uma manifestação em qualquer capital do Brasil, “de hoje para amanhã”:

— Nossa rede ganhou o país. Pessoas que acordam de madrugada, sobem morro, levam comida a famintos, distribuem agasalho e remédio. E o mesmo princípio que nos leva a lutar pelo morador de favela nos faz protestar pela vida de policiais, como já ocorreu várias vezes. Não é questão de ideologia, mas de coerência.

‘Mudou muito pouco’

Na elaboração do documentário, foram ouvidas cerca de 50 pessoas, como voluntários, políticos, pesquisadores, jornalistas e vítimas da violência, embora nem todos os depoimentos constem na obra com 1h23 de duração. Guillermo e os produtores ainda negociam com plataformas de streaming, nas quais o longa-metragem deve estar disponível em breve.

Em sintonia pela amizade longeva e pela iminente difusão do documentário, o diretor e Antonio Carlos também trilham roteiros parecidos na hora de comparar o momento atual com o vivido há 15 anos, quando a explosão de homicídios no estado e cenas de barbárie levaram cruzes às areias de Copacabana.

— Celebro ver as pessoas falando mais sobre política, mas surgiu um espírito conturbado, representado por uma cultura ultraconservadora que se espalhou — pontua o teólogo.

— Sendo bem direto, eu diria que mudou muito pouco de lá para cá. E, sob alguns aspectos, até piorou. Só ver que todo dia a gente tem um caso de racismo, um homem batendo em mulher. Mas seguiremos na luta — promete o uruguaio.





Fonte: G1