De ojá amarelo na cabeça, saia branca rendada e guias no pescoço, a mãe de santo Marcia Rocha ou Marcia de Iansã, como é conhecida, entoa cantos com firmeza e sorriso no rosto, junto aos demais membros do Centro Umbandista Caboclo Sete Flechas de Macaé, na Região dos Lagos do Rio. Eles viajaram neste domingo (18), com outros terreiros, para participar da 15ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, no Posto 5, em Copacabana.
— O mais importante é estarmos aqui. Queremos a liberdade de poder cultuar a nossa religião. Nós já sofremos intolerância nos nossos portões. Uma filha de santo de um babalorixá da nossa cidade também perdeu a visão por causa de um ataque a faca. Nós estamos aqui em luta pela vida de quem sofre com isso — conta Marcia, cuja fala é complementada pela mãe pequena do terreiro, Heloísa Lopes:
— Quando a gente vai para a rua a gente está mostrando a nossa fé, com nossas guias, nossas roupas, nossas vestimentas. Nós não temos vergonha de nos manifestar. Queremos somente respeito — acrescentou Heloísa.
No trio elétrico, uma banda multi instrumental fazia o batuque oficial da caminhada, acompanhada de alguns representantes religiosos, mas era na avenida que os sons de diferentes grupos surgiam. Em um deles, o som do atabaque era ritmado com as palmas de quem se aproximava para conferir de perto a roda.
— A energia é tão maravilhosa que é só tocar o atabaque que os pelos arrepiam, o coração começa a bater diferente e enche de paz. É outro nível. Acredito que todos nós temos um chamado, a gente pode estar em uma religião de matriz africana ou numa igreja, não importa — conta Tainá da Abassa de Kaià, de 30 anos, do Candomblé. Para ela, a falta de conhecimento é um dos motivos do preconceito religoso: — Procurar se informar, entender melhor e respeitar o outro pode mudar alguma coisa — disse Tainá.
O evento foi marcado pela diversidade de credos. Debaixo de sol, em uma das pistas da Avenida Atlântica, caminhavam lado a lado candomblecistas, islâmicos, católicos, evangélicos, budistas, xamânicos, judaicos, espíritas, wiccanos e por aí vai.
— Essa caminhada é a celebração das liberdades, da democracia, do estado laico e da diversidade. Em um momento de tanta intolerância religiosa, tanta misoginia, tanta homofobia, tanto racismo, é uma celebração ao diálogo, ao respeito e à paz — afirma o babalorixá Ivanir dos Santos, interlocutor da Comissão de Combate a Intolerância Religiosa (CCIR), que é organizadora do evento em Copacabana.
O Rio de Janeiro é o estado com mais casos desse tipo de violência. Só em 2020, foram registrados mais de 1,3 mil crimes que podem estar ligados à intolerância religosa, conforme o Instituto de Segurança Pública (ISP). No país, no ano de 2021, foram registradas 571 denúncias de violação à liberdade de crença, mais do que o dobro (243) das denúncias registradas em 2020, segundo apontam os dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).
— A sociedade precisa reagir para diminuir essa onda de ódio. Hoje existem autoridades públicas que incentivam a intolerância religiosa. É vereador, deputado, prefeito, e até o executivo federal. Por outro lado, os órgãos devem ter uma atitude mais concreta, ou seja, as delegacias precisam instaurar inquéritos, o Ministério Público fazer as denúncias e o judiciário punir — defende o babalorixá.
Pela primeira vez na caminhada, o paquistanês Ihtsham Ahmad Moman, de 28 anos e a brasileira Maria Moman, de 21, são recém-casados e moram no Rio – ele há um ano e meio, e ela, há uma semana. Nesse meio tempo, eles relatam terem sido alvos de várias situações de preconceito por serem islâmicos.
— Eu já fui chamado de homem bomba por várias pessoas, inclusive um motorista de aplicativo. Eu sou professor de língua árabe. As pessoas têm concepções muito distorcidas, não conhecem e acham que somos terroristas, que propomos perseguição às pessoas e isso não é verdade. O islã é uma religião de paz, amor e segurança — disse Ihtsham.
Maria relatou ter sido vítima de intolerância religiosa por causa do hijab, o véu que usa para cobrir os cabelos.
— Por causa do véu, já falaram para eu voltar para o meu país. Só que eu moro aqui, eu sou brasileira — conta.
Jussara Gabriel, de 66 anos, é sacerdotisa do Coven Dança das Estrelas. Ela explica que coven é a reunião de bruxos da Wicca, para realização de rituais. Ela participa do movimento contra a intolerância religiosa desde o primeiro evento.
— A gente tem que lutar pela nossa liberdade de culto. Nunca sofri preconceito, mas luto pela liberdade de culto de todas as religiões. A gente tem que se unir para que o estado continue laico — disse a sacerdotisa, que vestia um colar com um pentagrama e mostrou uma tatuagem lilás com o mesmo símbolo na testa.
O reverendo Elieser Moura Barreto, da Ordem de Pastores Evangélicos Mundial (Opem), acredita que o posicionamento de líderes religiosos pode incentivar o respeito e a liberdade de culto e credo de fiéis.
— Essa manifestação, que agrega diversos líderes que se posicionam, é importante para que possa existir mais tolerância e tornar o nosso povo mais amável. Está escrito na bíblia: ‘amar o próximo como a ti mesmo’, o amor é a maior a religião — afirmou.
“Amor o tempo todo” é o que transmitiam para a família a avó e a mãe do candomblecista Ronaldo Barbosa, de 54 anos, morador de Copacabana.
— Todo evento que busca a quebrar preconceito é importante. Esse é especial porque tem a ver com meus ancestrais, com minha religião, minha raiz. Muitos terreiros ainda sofrem ataques. Tenho duas irmãs que são Testemunhas de Jeová, uma evangélica, uma católica e eu sou do candomblé. Nossa família é amor o tempo todo, não importa a religião que um outro tenha. As matriarcas que sempre falavam isso. Elas nos ensinaram o respeito e o amor ao próximo — conta Ronaldo.
O domingo de sol em frente a uma das praias mais icônicas do Rio foi também de pé na areia para saudar a conhecida rainha do mar, Yemanjah. Makota Célia Gonçalves, coordenadora-geral do Centro Nacional de Resistência e Africanidade Afrobrasileira de Minas Gerais (Cenarab), comentou que até queria estar aproveitando a praia, mas a urgência é outra.
— Para mim essa caminhada é o reencontro com a democracia, com o direito a liberdade, a dignidade de ser brasileira e de rezar. Nos temos que ser intransigentes na defesa da liberdade religiosa e contra o racismo religioso. Queria mesmo é estar na praia tomando água de coco, mas ainda tenho que estar aqui lutando — disse Makota.
Fonte: Portal G1