Até a pandemia, os grupos de passeios históricos literalmente se esbarravam pelas ruas do Centro. Seja percorrendo os caminhos do Império, seja em tours mais pitorescos, como sobre as origens de doces famosos do Rio, que incluíam paradas em antigas confeitarias. Com a chegada da Covid-19, o Centro ganhou um clima fantasmagórico, que começa a ser espantado aos poucos com a ajuda de cariocas e turistas interessados em revisitar o passado. O projeto Sou+Carioca é um que mantém uma agenda de roteiros, como o da Rua do Lavradio e arredores.
Tudo feito com distanciamento e em grupos de no máximo dez pessoas. Aliás, o feriadão é uma oportunidade para quem gosta, mesmo sem a companhia de um guia, de desbravar a pé a história: neste caso, a da Independência do Brasil, cujas ideias passam pela Praça Tiradentes, pelo Largo de São Francisco, o Campo de Santana, a Praça Quinze e até mesmo Paquetá.
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Para quem ainda não se sente seguro de bater pernas por aí, o Rolé Carioca, que liderava tours disputados, agora promove passeios guiados mensais no mundo virtual. O próximo será no último domingo deste mês sobre os teatros do Centro do Rio.
—Desde março do ano passado fazemos um roteiro virtual por mês. A gente testou alguns formatos: caminhada ao vivo usando recursos como drone; imagens de acervo com um professor contando a história e, agora, nos aproximamos de um caminho que deve dar certo, de pequenos documentários, apresentados no dia com troca de ideias —explica Isabel Seixas, idealizadora e coordenadora do Rolé. —Nosso objetivo é, nos dez anos do projeto, no ano que vem, fazer retomada das ruas, reeducando o público, já que, mesmo que todos se vacinem, as regras ainda serão diferentes.
O Sou+Carioca retornou com a programação em junho, com um “menu” de 30 a 40 roteiros por mês:
— Estamos operando com capacidade de até dez pessoas por tour, com todo mundo usando máscara. Os roteiros são sempre em lugares abertos para que seja mantido o distanciamento, e é preciso fazer reserva antecipada, porque não temos mais pagamento na hora, para não haver contato — diz Gabriela Palma, sócia fundadora do projeto.
Praça Tiradentes
O Rio Experiência, que abrange diferentes plataformas e guias de turismo, se prepara para em novembro voltar às ruas. Essa é uma das iniciativas que nasceram no Rio seguindo a linha de “escovar a história a contrapelo”, para citar o filósofo alemão Walter Benjamin. Um passeio certo (e nada óbvio) será pelas igrejas secretas do Rio. Kadu Guimarães, um dos sócios fundadores do projeto, diz que o Império e a República não ficarão de fora. Às vésperas do 7 de Setembro, ele dá dicas de lugares para quem quer se aprofundar na data, que completará 200 anos em 2022 e que gira em torno de duas figuras: Pedro I e José Bonifácio de Andrada e Silva, o mentor da Independência.
— O ponto mais emblemático de todos nessa história é a Praça Tiradentes, onde fica a estátua de Dom Pedro I, que já foi considerada a mais bonita do Brasil. Quando foi proclamada a República, pensaram em destruí-la. Só que ela não é uma homenagem só a Dom Pedro, mas também à brasilidade, com a apresentação da fauna e de indígenas. Além disso, é a mais antiga estátua de personagem cívico do Brasil —explica Kadu.
Primeira escultura pública do Brasil, a estátua equestre do imperador segurando a nossa primeira Constituição foi esculpida em Paris e inaugurada em 30 de março de 1862, com direito a foguetório e meninos cantando em coro o Hino Nacional e o da Independência. A guia Dida Jeronymo, do Sou+Carioca, diz que nesses idos de mil e oitocentos a então Praça da Constituição era o local mais efervescente da cidade:
— A Praça Tiradentes era praticamente uma Cinelândia na época. Todos os acontecimentos políticos ocorriam ali. Os rebeldes se concentravam muito ali, e era um lugar da noite, da prostituição e dos teatros. Lapa é fichinha perto do que foi a Praça Tiradentes.
Antes Rossio e Constituição, a praça também era o local de residência de um dos personagens mais marcantes da História do Brasil. A casa de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, onde receberia com frequência Dom Pedro — em muitos momentos era essa residência e não o Paço a sede do governo — não existe mais, mas ele ganhou em setembro de 1872 uma estátua ali perto, no Largo de São Francisco.
Justiça e Ciência
Sua representação é cheia de simbolismos. Na mão direita a pena está apoiada em livros, numa referência ao manifesto “às nações amigas” escrita por ele em que defendia a proclamação da independência política do Brasil. E na base do monumento, aos pés da figura, há as alegorias da Justiça, Ciência, Integridade e Poesia.
— Ele tinha uma cabeça muito à frente do seu tempo, era um liberal, influenciado pela independência e constituição dos Estados Unidos. Foi forjado pelas ideias iluministas e pela ideia americana de implantação de três poderes equilibrados —conta Kadu, dizendo que, mais tarde, o político e também naturalista e poeta, devido a desavenças políticas, se exilaria em Paquetá, numa casa transformada no Museu da Comunicação e Costumes José Bonifácio.
Fichel Davit Chargel, proprietário da residência em Paquetá e colecionador, espera a pandemia dar trégua para abrir as portas do museu. Para o bicentenário do Grito do Ipiranga, há uma série de eventos sendo pensados na ilha.
O Campo de Santana é mais ponto fundamental desse roteiro, já que lá Dom Pedro, em momento crucial para a Independência, protagonizou o Dia do Fico. Lá, depois, em grande solenidade, seria aclamado Imperador. Os festejos duraram seis dias, e no meio do Campo, o povo se divertiu com touradas, danças e fogos de artifício. Já a coroação ocorreu em 1º de dezembro de 1822 na Igreja Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, na Praça Quinze. Para os 200 anos, no mesmo dia, a Associação de Amigos da Antiga Sé já programa uma representação teatral da solenidade.
Isabel, do Rolé Carioca, sugere ainda outros locais, alguns curiosos, como a Rua Sete de Setembro, batizada com a data histórica. Nos seus primórdios, a via tinha nome menos pomposo: era chamada de Rua do Cano, porque nela havia um duto — por muito tempo uma vala aberta e malcheirosa no coração da cidade — ligando a Lagoa de Santo Antônio ao mar.
Fonte: G1