Pouco depois das 9h do último dia 6, na Casa do Trabalhador de Olaria, na Zona Norte carioca, uma atendente dá informações sobre o único serviço prestado naquele momento — um pré-cadastramento para uso de um aplicativo do projeto tocado pelo governo do estado, que deveria capacitar mão de obra e intermediar a inserção de cidadãos no mercado de trabalho. Desde então, equipes do GLOBO percorreram, em dias e horários diferentes, oito dos 29 espaços semelhantes já inaugurados no Rio. A constatação foi parecida: funcionários ociosos e a oferta apenas de um ou outro curso de qualificação. Isso, quando as casas não estavam fechadas, como se verificou em três visitas à da Ilha do Governador, ontem e nos dias 6 e 19 de julho.
Esse é o quadro de um projeto que, só este ano, segundo dados do Portal da Transparência, teve empenhados cerca de R$ 80,2 milhões para gestão de suas unidades de atendimento, com recursos liberados via Fundação Centro Estadual de Estatísticas, Pesquisas e Formação de Servidores Públicos do Rio, o Ceperj, alvo de uma ação civil pública do Ministério Público do Rio (MPRJ) ajuizada no último domingo. Os promotores investigam como a fundação se tornou “fornecedora de um imenso volume de mão de obra contratada por prazo determinado para diversos órgãos do estado”, sem que os nomes e a remuneração tenham sido divulgados em qualquer meio oficial do governo.
Os pagamentos da “folha secreta”, aponta o MPRJ, ocorrem na “boca do caixa”, em saques que somam quase R$ 226,5 milhões em espécie circulando, diz a petição inicial, “por fora do sistema financeiro, cuja efetiva destinação será impossível de verificar”, afrontando, assim, as “regras de prevenção à lavagem de dinheiro”. Procurado, o Ceperj não retornou os contatos do GLOBO.
Falta de transparência
A Casa do Trabalhador, numa parceria do Ceperj com a Secretaria estadual de Trabalho e Renda (Setrab), é um dos principais projetos em que ocorreram essas contratações, com suspeitas de que parte delas tenha acontecido por indicações políticas. Nem em Diário Oficial, nem no Caderno de Recursos Humanos do estado, no entanto, é possível saber quantas pessoas foram chamadas às vagas criadas.
A casa de Olaria foi inaugurada em 11 de junho deste ano. A previsão era de que o equipamento tivesse 16 funcionários, a maioria focada na busca ativa por vagas de trabalho, e que 30 agentes ficariam responsáveis por ir às casas dos moradores.
Na primeira visita do GLOBO à casa, em 6 de julho, foi possível avistar quatro funcionários, um deles no atendimento ao público. Em 19 de julho, às 15h45, eram dois atendentes, que disseram que a casa oferecia cursos de Jovem Aprendiz e para realocação no mercado de trabalho, mas que ainda se estudava se, no futuro, o local teria qualificações técnicas, em parceria com o Senac.
No dia 22 de julho, perto das 13h, a informação era a mesma. Ontem, após o Ceperj suspender temporariamente o projeto para auditoria, o local estava fechado.
Na casa de Campo Grande, ontem pela manhã, uma placa na porta dizia: “Estamos passando por uma reformulação para melhor atender a população”. Moradora de Santíssimo, Flavia dos Santos Silva, de 36 anos, saiu de lá frustrada:
— Faz mais de dez anos que estou desempregada. Vim tentar um curso, um emprego… Mas, está fechado.
Em Guadalupe, a casa, que funciona num shopping, estava aberta, mas apenas uma funcionária atendia, informando que “nunca existiu curso ali” e que ela apenas pegava nomes para futuras atividades profissionalizantes.
O Plano de Trabalho do projeto, acessado no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do estado, no entanto, estabelecia que os resultados seriam alcançados, por exemplo, com a capacitação profissional a curto, médio e longo prazos. Associando a Casa do Trabalhador aos projetos Agente de Trabalho e Renda e Agente da Empregabilidade, previa a contratação de mais de 7 mil pessoas, com salários de até R$ 10 mil, de psicólogos a fonoaudiólogos e auxiliares de serviços gerais. Só agentes da empregabilidade seriam 6 mil, com salários de R$ 2.800 — remuneração semelhante à de 310 agentes de trabalho.
Explosão de despesas
Sobre o quanto, de fato, se gasta, há alguns indicativos. Dados da execução de despesas levantados pelo gabinete do deputado estadual Luiz Paulo (PSD) apontam que, de janeiro a junho deste ano, foram destinados ao projeto Agentes de Trabalho e Renda nas unidades da Casa do Trabalhador cerca R$ 41,48 milhões, além de quase R$ 8,3 milhões empenhados para o INSS.
Já documentos acessados no SEI indicam que R$ 3,8 milhões foram gastos com pessoal externo do projeto Agentes de Trabalhos e Renda, em março. Aparecem no sistema também solicitações para pagamentos a pessoal externo de outros projetos do Ceperj na mira dos promotores do MPRJ. Para o Esporte Presente, em janeiro deste ano, por exemplo, foram pedidos R$ 9,2 milhões. Sobre esse projeto, reportagem do RJ2, da TV Globo, apontou ainda denúncias da prática de “rachadinha”, envolvendo deputados, que ficam com parte do dinheiro pago a funcionários.
Já a ação do MPRJ, com base em dados de uma planilha do Bradesco, diz que este ano a Ceperj chegou a emitir 91.788 ordens de pagamento, para 27.665 pessoas, um gasto de R$ 248,49 milhões. A maioria dos favorecidos, ressalta o texto, recebe mais de um pagamento, o que indica que não dizem respeito a “fornecedores eventuais”, mas sim à remuneração de mão de obra temporária, contratada por prazo determinado.
Os valores ajudam a explicar o aumento dos recursos à disposição da fundação. Segundo a Transparência do governo estadual, os empenhos do Ceperj saltaram de R$ 21,2 milhões em 2020 para R$ 127,4 milhões em 2021. Até agora, este ano, essa verba quadruplicou: já alcançou R$ 508,7 milhões, sendo R$ 225,6 milhões oriundos da concessão da Cedae.
Esse é mais um ponto destacados na petição do MPRJ. Ajuizada pela 6ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania, com tramitação na 15ª Vara de Fazenda Pública da Capital, a ação pede tutela de urgência para que o estado e a Fundação Ceperj se abstenham de admitir pessoal e divulguem todas as contratações e remunerações em seu portal eletrônico, além de requerer que o Banco Bradesco deixe de cumprir as ordens de pagamento emitidas pela Ceperj.
‘Estava com a esperança’
Enquanto isso, na ponta dos serviços à população, a Casa do Trabalhador de Itaguaí era mais uma fechada ontem, às 10h45. Funcionários do centro comercial onde está localizada, assim como servidores da Secretaria de Assistência Social do município, vizinha do local, garantem que o espaço nunca funcionou. Mas foi inaugurado, em 1º de julho.
Em Sepetiba, na Zona Oeste do Rio, o endereço em que o projeto funcionou até dias atrás sequer é o informado no site da Setrab, que se refere, na verdade, a uma casa abandonada. Em Vigário Geral, na Zona Norte, no último dia 22 de julho, perto das 13h30, havia pelo menos seis funcionários. Na fachada, uma placa listava os serviços que deveriam ser prestados. Entre eles, “capacitação e qualificação social e profissional”. Apesar disso, segundo a coordenadora do espaço, não havia previsão de implementação de cursos e que o único objetivo da casa era fazer um cadastro das pessoas que estão procurando empregos e tentar ajudá-los com a busca de vagas.
No mesmo dia, em Madureira, às 14h30, O GLOBO encontrou um curso em andamento, ministrado pelo Instituto Ilha de Oportunidades. Ontem à tarde, as portas do local estavam fechadas. Douglas Josué Esteves, de 35 anos, e Vinicius Azevedo Pereira, de 32, tentaram acessar os serviços. Não conseguiram.
— Vim procurar ajuda do governo e dei de cara com a porta. Estava com a esperança — relatou Vinicius.
Até a noite desta terça-feira (2), a Justiça ainda não havia decidido sobre a ação do MPRJ.
Fonte: Portal G1