Polo Saara, no Centro do Rio, vai virar sessentão, com menos árabes e mais chineses

“Tem balangandã e joia rara nesse Canaã que é o Saara”. Mesmo com as mudanças que aconteceram ao longo do tempo, especialmente a chegada com força total dos chineses e seus produtos importados e baratos, o refrão do samba enredo da Escola de Samba Estácio de Sá, de 1994, continua reproduzindo o espírito desse pedacinho do Centro do Rio, onde diariamente milhares de compradores vão atrás de bons preços. Com 12 ruas principais e cerca de 900 lojas, em 2013 o lugar virou polo, que vende de brinquedos a joias, passando por roupas, tecidos, flores e utilidades para casa. Em junho último, uma estação do metrô agregou seu nome: virou Saara-Presidente Vargas.

A Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega (Saara) completa 60 anos em 5 de outubro. E a sigla acabou sendo usada para identificar a região de comércio popular que, no fim do século XIX, passou a ser ocupada por cristãos, muçulmanos e judeus, a maioria sírios e libaneses, expulsos de suas terras devido à expansão do império turco-otomano. Na época, eles montavam pequenos negócios no térreo e moravam no sobrado. Com as guerras mundiais, imigrantes de outras nacionalidades foram se achegando.

Segundo a direção da Saara, os asiáticos — de Taiwan, Hong Kong, e, mais recentemente, da China continental (a República Popular da China) — já são quase a metade dos lojistas do lugar. Os árabes, que chegaram a controlar 80% das lojas, hoje ocupam entre 30% e 40% delas. Comerciantes brasileiros também descobriram a região nas últimas décadas.

— Como temos poucas lojas vazias nas ruas mais concorridas, a perspectiva é de os chineses passarem a alugarem os imóveis fechados na Rua da Constituição, que perderam a freguesia com a inauguração do VLT. Mesmo a crise e a pandemia tendo nos afetado, a Saara é um oásis no Centro. O comércio da Avenida Marechal Floriano, por exemplo, praticamente não existe mais — ressalta o presidente da sociedade, Sérgio Obeid, de família libanesa, que tem como vizinho de loja o tio Khalil, de 93 anos.

Roupas de banho, a preços populares, são expostas na entrada de loja na Saara
Roupas de banho, a preços populares, são expostas na entrada de loja na Saara Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

Diretor da Saara, Eduardo Blumberg — filho de judeus poloneses que se instalaram no local — bate o martelo:

— Não há dúvida, a Saara é o maior shopping a céu aberto do estado. Recebemos de 100 a 200 mil pessoas diariamente. O movimento maior é no período de carnaval. Somos o maior polo de venda de produtos de carnaval do mundo.

Nem Blumberg, tampouco o presidente do Sindicato dos Lojistas do Comércio do Município do Rio (SindlojasRio), Aldo Gonçalves, estimam o faturamento do comércio da Saara. Gonçalves, porém, destaca o seu pioneirismo.

— A Saara serviu de modelo de organização para o país. É a primeira a ser chamada de shopping a céu aberto. A 25 de Março e o Brás (em São Paulo) não são tão estruturados como a Saara — diz ele, assinalando que a segurança própria do local impede a presença de camelôs, contrastando com a vizinha Rua Uruguaiana.

Entre consumidores, o preço é o grande atrativo.

— Estava precisando de uma mala para viajar. Fui procurar em Campo Grande, onde moro, e encontrei por R$ 350, R$ 400. Aqui consegui por R$ 290 — revela o aposentado João Batista Teixeira, de 69 anos.

A movimentada Rua da Alfândega: primeira a ter lojas na Saara
A movimentada Rua da Alfândega: primeira a ter lojas na Saara Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

Fim da moradia

O uso do andar de cima das casas como moradia ficou no passado da Saara. Os espaços viraram lojas ou depósitos de produtos. Joel Mansur, de 79 anos, nasceu no 266 da Rua Senhor dos Passos, onde hoje são guardadas mercadorias da loja de utilidades domésticas que funciona no térreo. Sírios católicos, os pais dele foram viver na Saara há 86 anos.

— Morei 14 anos nesse sobrado. Comprava pão na Bassil (é de 1913), a primeira padaria da região. Até hoje, tem fila para comprar o pão sírio da Bassil, que era frequentada pelo Garrincha — recorda Mansur. — Mas restaurantes tradicionais, como o Cedro do Líbano e o Du Nil, acabaram. A Charutaria Syria, com mais de 100 anos, é outro estabelecimento que não existe mais.

Há 44 anos, Mansur montou seu próprio negócio: uma loja de tecidos na Buenos Aires. Nessa rua, entre a Avenida Passos e a Praça da República, há outras nove lojas abertas que vendem tecidos, produto pouco comercializado atualmente na região, pois a roupa pronta ganhou a preferência do consumidor.

Donos da Dália — loja de cama, mesa e banho, que daqui a dois anos completa um século — os irmãos Isaac Meyer Nigri, de 86 anos, Salim, de 84, e José, de 79, nasceram na Saara. Libaneses judeus, os pais deles, Meyer e Jamile, foram imigrantes.

— Estou há 70 anos trabalhando no comércio da Saara. Comecei com 16 — conta Isaac. — Antes as lojas eram mais de atacado. Forneciam para o interior do Brasil todo. Agora, são mais de varejo. Antigamente vendíamos tecido. As pessoas compravam o pano e faziam o lençol. De 20 anos para cá, o lençol vem pré-fabricado.

Embora dois filhos de Isaac o ajudem na loja, ele faz questão de “bater o ponto”:

— Ficar em casa me dá uma agonia. Prefiro trabalhar do que ver o tempo passar. Não venho aos sábados. Dá saudade e, na segunda, venho correndo para ver o que aconteceu.

Mercadorias expostas em bancas na calçada: tradição do Polo Saara
Mercadorias expostas em bancas na calçada: tradição do Polo Saara Foto: Márcia Foletto / Agência O Globo

A Sara que virou Saara

A Saara é limitada por Avenida Presidente Vargas, Praça Tiradentes, Campo de Santana e Rua dos Andradas. E a história do lugar está muito ligada a um libanês cristão, que, bem antes de a sociedade existir, criou a Gabriel Habib e Filhos Limitada, na segunda década do século XX, na Alfândega.

— O meu avô (há um busto em homenagem a Gabriel Habib na Praça do Mascate, na esquina de Buenos Aires com Regente Feijó) foi pioneiro na venda a varejo na região. Ele foi muito criticado à época, e começou devagar com o varejo. A firma cresceu, vendendo brinquedos, eletrodomésticos, roupas de cama e mesa. Chegamos a ter quatro lojas no Rio. Em 2001, fechamos a da Saara, e hoje mantemos só a de Inhaúma — conta Gabriel Habib Neto.

Foi graças a outro Habib que a região sobreviveu. Era intenção do Governo Carlos Lacerda (1960-1965) construir a Via Diagonal, que ligaria a Central à Cinelândia, pondo abaixo muitos imóveis. Pai de Habib Neto, Demétrio formou uma comissão, que foi até Lacerda e argumentou sobre a perda de impostos se o projeto fosse adiante. E o então governador da Guanabara desistiu da ideia.

— O meu pai convocou, de novo, os comerciantes, e propôs se organizarem numa associação. Um deles sugeriu o nome Sara (Sociedade de Amigos da Rua da Alfândega), mas meu pai lembrou que Sara era nome judeu e que ali havia pessoas de outras origens. Outro comerciante sugeriu Saara, que foi aprovado.

Gabriel Habib Neto (à esquerda), que fechou a loja, e Joel Mansur, que tem casa de tecidos na Saara
Gabriel Habib Neto (à esquerda), que fechou a loja, e Joel Mansur, que tem casa de tecidos na Saara Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

Chineses e brasileiros

Entre os chineses, a família de Chang Cherng foi uma das primeiras a ter negócio na Saara. Com 55 anos, Chang chegou ao Brasil aos 5, acompanhando a mãe, que virou sacoleira. Há 40 anos, os Cherng, de Taiwan, montaram a primeira loja na Senhor dos Passos. Depois, foram para a Alfândega. Chang explica que as facilidades dadas à importação vêm atraindo asiáticos. Contudo, reclama da redução do movimento:

— A chegada do VLT tirou linhas de ônibus do Centro, e os fregueses diminuíram. O lugar também perdeu um pouco de seu charme, com o fechamento de lojas centenárias, como a Turuna (vendia artigos de carnaval).

Com avós e pais imigrantes de Taiwan, a brasileira Márcia Chan, de 39 anos, passou parte da infância correndo por ruas da Saara, onde a família montou comércio. Há cinco anos, Márcia e o marido, Leonardo Pena, abriram uma loja de decoração. Cerca de 80% dos seus produtos são importados, diretamente ou comprados de importadores. Márcia também reclama das vendas:

— Têm muita gente andando nas ruas da Saara, mas os compradores são poucos. Diria que 2022 está pior do que 2020, quando passamos a vender pela internet por causa da pandemia de Covid-19. Por isso, passamos a abrir mais tarde e a fechar mais cedo.

Alguns, como os Habib e Paula Bittencourt, não resistiram à crise econômica e a pandemia de Covid-19, e deixaram a Canaã. Ela é filha do mineiro Ênio Bittencourt, que montou uma loja de artigos esportivos na Saara em 1962, presidiu a organização por duas décadas e faleceu em 2016. Em 2017, Paula transformou a loja em cafeteria, acabando com o negócio em maio do ano passado. Atualmente, trabalha com reflexologia podal e massoterapia.

— Não deu para manter. Demorei de maio a novembro para passar o ponto e alugar. O meu inquilino ainda não abriu a loja — afirma.



Fonte: Portal G1