Plano de complexo com 15 termelétricas em Macaé pode esbarrar na falta d’água e acende alerta

Macaé, conhecida como a “capital nacional do petróleo”, tenta agora se tornar a “cidade energia”: além de duas termelétricas (UTEs) instaladas, tem uma terceira em construção e planos para mais 12. Num mundo em busca de fontes de energia limpas e renováveis, porém, essa aposta é considerada mais poluente, com a previsão de que a produção dos empreendimentos ocorra a partir da queima de um combustível fóssil, o gás natural. Ambientalistas e ONGs denunciam as consequências desse conglomerado de usinas. E o Ministério Público Federal (MPF) abriu um inquérito para apurar os impactos de todas elas juntas na qualidade do ar do município, devido à emissão de gases de efeito estufa e contaminantes atmosféricos como os óxidos de nitrogênio (NOx). Mas há outra questão básica em jogo: se haverá água suficiente para abastecer a população e o complexo termelétrico, numa cidade onde estima-se que 80 mil pessoas já não têm fornecimento contínuo.

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A polêmica, que tem movimentado audiências públicas na cidade, ocorre no momento em que a Justiça proibiu, na semana passada, a instalação de termelétricas flutuantes em outro ponto do Rio — a Baía de Sepetiba. No Norte Fluminense, os questionamentos quanto à disponibilidade hídrica se dão porque ao menos sete das UTEs planejadas preveem uso de água do Rio Macaé (o mesmo que abastece o município) para resfriar seus equipamentos.

Nesse curso, com base em dados da Agência Nacional de Águas (ANA), o Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema) já apontou que só as duas UTEs existentes e a que está em construção (a Marlim Azul), quando operantes, também com recursos do Rio Macaé, devem precisar de 230 litros de água por segundo, o equivalente a 55% de toda a água consumida no município. Outro instituto, o Arayara, estima que o déficit hídrico na região poderia chegar a 180% se as novas unidades forem, de fato, instaladas. Impactos que, segundo a organização, não foram avaliados em seu conjunto nas licenças já concedidas pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e pelo Ibama.

— Os licenciamentos têm ocorrido isoladamente. Houve falhas sistêmicas nesses processos em Macaé — afirma Juliano Bueno de Araújo, diretor técnico do Arayara.

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Seca em dez anos

Antes mesmo de surgirem os projetos de termelétricas, projeções do Comitê da Bacia do Rio Macaé apontavam que, entre 2027 e 2032, o rio poderia secar nos piores cenários de estiagem na região onde ficam as principais captações. Pesquisador do Iema, Felipe Barcellos dá a dimensão da demanda das UTEs:

Na terra dos royalties. Gabriela Cristina Santos carrega galão abastecido em caixa d’água pública no bairro Lagomar
Na terra dos royalties. Gabriela Cristina Santos carrega galão abastecido em caixa d’água pública no bairro Lagomar Foto: Marcia Foletto / Agência O Globo

— Em média, vale ponderar que, a cada mil megawatts de potência, sendo acionada 24 horas por dia, uma usina a gás natural com torre úmida (resfriamento com água) demanda cerca de 24 milhões de litros diários de água, sendo que 70% disso pode ser perdido por evaporação, o que equivaleria ao consumo médio de 109 mil habitantes.

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Enquanto isso, o Painel Saneamento Brasil, do Trata Brasil, indica que 9,2% dos moradores de Macaé não tinham acesso a água em 2020. Nas áreas periféricas, que cresceram vertiginosamente com o advento da indústria do petróleo, a abundância de royalties não impediu que milhares de pessoas vivam com as torneiras secas. No Lagomar (loteamento com cerca de 30 mil moradores), muitos, sem água encanada da Cedae, têm que se munir de baldes, garrafas e galões para enchê-los em caixas d’água públicas, abastecidas pela prefeitura com caminhões-pipa.

— Mas a água nessas biqueiras dura poucas horas. E ninguém sabe ao certo quando as caixas vão ser reabastecidas, se uma vez por semana, de 15 em 15 dias — conta a estudante Gabriela Cristina dos Santos, de 36 anos, ressaltando que em outros bairros próximos, como Bosque Azul, mesmo com água encanada, o abastecimento não é contínuo.

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No Lagomar, onde poucos conhecem os planos das termelétricas, moradores contam que, na via principal do bairro, políticos instalaram trechos de encanamento, mas que nunca foram conectados às casas. Em várias ruas, vizinhos organizaram mutirões para fazer as ligações.

— Aqui, 60 famílias se juntaram, pagaram R$ 200 cada uma, alugaram máquinas e realizaram a obra. Mas, geralmente, só cai água uma vez por semana — diz o motorista Eduardo da Silva, de 32 anos.

Numa área de restinga à beira-mar, com poços artesianos de água salobra, quem fatura são empresas de água mineral e donos de caminhão-pipa.

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Uma nova Cubatão

Junto ao drama hídrico, se todas as termelétricas forem instaladas — para isso, elas precisam vencer leilões da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) —, o futuro da qualidade do ar no município vai igualmente inspirar preocupações. O biólogo Thièrs Wilberger, do Instituto Arayara, afirma que as condições em Macaé podem se tornar parecidas com as de Cubatão, em São Paulo, nos anos 1980, com consequências não só à saúde da população:

— Podem se formar chuvas ácidas, empurradas para cima da Mata Atlântica e do polo de agricultura orgânica.

No Iema, Felipe Barcellos afirma que, em 2020, a partir de dados do Inea, é possível aferir que, por 88 dias, os níveis de ozônio já estiveram acima do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em Fazenda Severina, local de medição mais próximo às usinas existentes em Macaé. Ele cita ainda o estudo “Inventário de emissões atmosféricas em usinas termelétricas”, lançado pelo Iema no mês passado, que indicou o Estado do Rio no topo de emissões de gases de efeito estufa por UTEs já em 2020, com 18,9% do total do país.

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Hoje, lembra Felipe Barcellos, são sete termelétricas no estado conectadas ao Sistema Interligado Nacional. Das usinas licenciadas e ainda não contratadas, diz, o Iema rastreou ao menos 19 planejadas em todo o Rio, a maioria no Norte Fluminense: além das 12 de Macaé, há três na região do Porto do Açu, em São João da Barra, duas em Campos dos Goytacazes e duas em São Francisco de Itabapoana.

A expansão das térmicas, diz ele, acontece em todo o país. Complexos como o de Macaé são previstos também em Suape (PE), Pecém (CE), Barra dos Coqueiros (SE) e Barcarena (PA), assim como no próprio Porto do Açu. Juliano Bueno de Araújo, do Arayara, aponta que, além de poluente, a energia de termelétricas é, em geral, mais cara. Nas usinas flutuantes da Baía de Sepetiba, ressalta ele, o custo da produção do megawatt seria de R$ 1.600, contra a média de R$ 260 nas hidrelétricas.

Dos órgãos responsáveis pelo licenciamento ambiental das termos, o Ibama não respondeu aos questionamentos do GLOBO. Já o Inea afirma que, das novas usinas macaenses, três têm licenças de instalação emitidas pelo órgão. O instituto nega, porém, que os impactos cumulativos e sinérgicos dos empreendimentos não estejam sendo mensurados. Sobre os questionamentos relacionados à água, o Inea diz que a disponibilidade hídrica da região está sendo considerada nos licenciamentos: “Cabe frisar que os pontos de captação e lançamento da concessionária pública de abastecimento e esgotamento, no Rio Macaé, são anteriores aos pontos de captação das referidas usinas”.

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A prefeitura de Macaé, que estuda uma nova concessão dos serviços de distribuição de água, não respondeu. Já a Marlim Azul Energia S.A., responsável pela termelétrica Marlim Azul, em construção, afirma que a UTE entrará em operação em 2023 e será a primeira do Brasil a utilizar gás natural proveniente do pré-sal. Segundo a empresa, a energia gerada será capaz de atender a mais de 2 milhões de residências, a R$ 85 o megawatt-hora.

“Destacamos que o projeto passou por todas as etapas de licenciamento ambiental previstas na legislação”, diz a Marlim Azul Energia, apontando que medidas de prevenção, mitigação e monitoramento dos impactos ambientais estão sendo tomadas, “ainda que a tecnologia adotada pela UTE garanta emissões abaixo dos limites legais previstos para projetos deste tipo”.



Fonte: Portal G1