Pesquisadores e descendentes de escravizados unem forças no projeto AfrOrigens, que busca vestígios do tráfico em Angra dos Reis

No final de 2022, arqueólogos e pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Sergipe (UFS) encontraram, nas águas da região de Bracuí, em Angra dos Reis, destroços de antigos naufrágios que podem levar a uma descoberta reveladora. No projeto, que o grupo batizou de AfrOrigens, o desafio é identificar no fundo do mar vestígios do brigue Camargo, considerado um dos últimos navios a desembarcar no Brasil com escravizados trazidos da África, em dezembro de 1852.

A pesquisa é promissora porque são raros os casos de naufrágios de navios negreiros em estudo no mundo — e, por outro lado, são mais fartas as informações sobre o Camargo e seu destino. Encontrá-lo, portanto, é possível e pode trazer novos dados sobre como operavam esses navios na fase final do tráfico, quando a agilidade para escapar da fiscalização era fundamental

— O Camargo era um brigue, barco que começou a ser mais utilizado porque sua engenharia permite maior velocidade — ensina Júlio César Marins, pesquisador da UFS, que participa das buscas. — Essa descoberta pode trazer à tona todo um apagamento histórico sobre o tráfico transatlântico.

Em meados do século XIX, forças do Império foram deslocadas para a região, no encalço do

Camargo, o que rendeu registros tanto em documentos oficiais quanto em jornais da época

A derradeira Viagem
A derradeira Viagem Foto: Editoria de Arte

— Não tenho notícia de outro tão documentado. É certo que o Camargo naufragou ali: existem fontes escritas, do Ministério do Interior, das autoridades policiais — diz a historiadora Martha Abreu, professora da UFF. — Sabemos de desembarques em todo o Rio. Mas o Camargo é o único que vamos conseguir ver.

Dois anos antes do naufrágio da embarcação, foi aprovada no Brasil a Lei Eusébio de Queiroz, que pôs fim ao tráfico. Não foi a primeira tentativa: em 1831, a pressão internacional, sobretudo inglesa, havia levado à Lei Feijó, que tinha o mesmo fim. A falta de rigor em aplicá-la, contudo, fez com que o texto ganhasse a alcunha de “lei para inglês ver”.

— É importante apontar que esse movimento era contra o tráfico, não contra a escravidão. Havia entre a elite o medo de termos africanos demais no Brasil — explica Martha Abreu.

Mesmo desmoralizada, a Lei Feijó teve consequências: o Cais do Valongo, no Centro do Rio, principal ponto de desembarque de escravizados, foi fechado. A prática se reestruturou em locais afastados e mais adequados à clandestinidade, como o Bracuí.

Foi o capitão do Camargo, o americano Nathaniel Gordon, que, para tentar ocultar seu crime, ateou fogo ao brigue após chegar ao seu destino. Parte da tripulação foi presa e levada para a capital, mas Gordon, vestido de mulher, escapou e seguiu no rentável negócio. Em 1861, durante a Guerra Civil Americana, o capitão foi capturado ao retornar de Cuba. Enforcado um ano depois, terminou sua carreira como o único americano executado pelo tráfico de seres humanos.

Os 500 escravizados trazidos por Gordon da região onde hoje fica Moçambique desceram do brigue em uma propriedade do cafeicultor Joaquim José de Souza Breves, um dos maiores donos e contrabandistas de escravizados da História do Brasil, que teria financiado a viagem. Na região da antiga Fazenda Santa Rita hoje vivem, em um núcleo quilombola, descendentes dos desembarcados no Bracuí. Eles apontam um dos possíveis locais do naufrágio.

— Não há como falar de um (o naufrágio) sem o outro (o quilombo). Nós não utilizamos só o levantamento historiográfico tradicional, mas também demos relevância à oralidade deles, um traço da cultura africana — diz Marins.

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A memória oral da comunidade traz informações a confirmar, como a de que havia pessoas dentro do barco durante o naufrágio.

— Quem fez o relato dos historiadores foi a própria tripulação. Na História oral se fala que morreu gente, os que estavam dentro do porão, e que não houve fogo. Só salvou-se quem estava na parte de cima — relata Marilda Francisco, de 60 anos, liderança do quilombo.

Outros possíveis locais do naufrágio foram identificados por meio documentos e relatos de mergulhadores. Por ser uma área onde durante décadas aportavam navios como o Camargo, há a expectativa de novas descobertas.

— O Camargo levava apenas 500 pessoas. Quantas outras viagens não foram feitas? — questiona Gilson Rambelli, professor da UFS que pesquisa o tema há 20 anos.

A proximidade com a produção de café em São Paulo e no Vale do Paraíba explica a escolha de Breves, ele mesmo dono de terras naquela região, pelo Bracuí. Na Fazenda Santa Rita, onde se produzia açúcar e cachaça, mercadorias usadas nas compras de escravizados na África, as vítimas do tráfico se recuperavam da viagem antes de seguirem para seus compradores, em caminhada de oito horas serra acima.

Foi nessa direção que as autoridades policiais foram enviadas pelo Império na tentativa de reprimir o tráfico. Apenas cerca de 50 africanos foram resgatados e levados para o Rio.

— As buscas começaram em janeiro de 1853, foram enviadas forças policiais de São Paulo e do Rio até Bananal para encontrarem os africanos trazidos no navio — diz Martha Abreu, ao observar que a iniciativa contrariava os fazendeiros. — Eles não queriam os policiais em suas terras.

Turismo e História

As buscas pelo Camargo serão intensificadas no meio do ano, entre junho e julho, e vão contar com equipamentos de ponta, que vão vasculhar a água em busca de anomalias de ferro que podem não ter sido ainda encontradas ou estão abaixo de sedimentos. Etapas futuras da pesquisa vão envolver a análise do material encontrado nos naufrágios para identificar quais dos destroços têm características compatíveis com as do Camargo

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Entre os planos do AfrOrigens está um trabalho de arqueologia terrestre nas ruínas da Fazenda Santa Rita, além de pesquisas de outros naufrágios semelhantes no litoral brasileiro. <EP,1>Uma equipe de cinegrafistas da Aventuras Produções acompanha o trabalho e pretende produzir um documentário sobre o navio. Há ainda a expectativa de que a descoberta impulsione o turismo local e dê retornos para o quilombo.

— Temos aqui o nosso turismo de base comunitária, com trilhas, cachoeiras, comida, danças. Queremos fazer lá (na área do naufrágio) um lugar onde a gente possa levar os turistas e contar a História do Camargo — diz Marilda Francisco.

Fonte: Portal G1