Para corrigir injustiça, estátua de João Cândido, o Almirante negro, ganha novo lugar no Rio

Escondida atrás de uma estação do VLT e sem qualquer placa de identificação, a estátua de João Cândido, que entrou para a História como o “Almirante Negro”, devido a sua liderança na Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, passa despercebida por quem circula pela Praça Quinze, no centro do Rio. Até 2008, esteve no Museu da República, no Catete, também sem protagonismo. A prefeitura do Rio promete corrigir a injustiça com nova mudança de local, desta vez para a Praça Marechal Âncora, onde acredita que terá o merecido destaque. A troca vai acontecer quando for concluída, até o início de setembro, a restauração de um conjunto de 25 monumentos para o Bicentenário da Independência, com investimento municipal de mais de R$ 4,5 milhões. O marinheiro é o único negro de uma lista de sete personalidades históricas incluídas no pacote.

— O lugar que João Cândido merece estar é na Praça Marechal Âncora. Ali ocorreram dois grandes marcos da história dele: primeiro, quando apontou os canhões (para o Palácio do Catete), e depois quando caiu no esquecimento e terminou seus dias como mercador de peixes naquele local. A prefeitura está vendo nisso também um pedido de desculpas da cidade ao grande nome. Assim que o restauro ficar pronto, a estátua vai para o devido lugar de honra — promete a secretária municipal de Conservação, Anna Laura Valente Secco, lembrando que a mudança foi uma decisão conjunta com a Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial.

Discrepância geográfica

Escolha geográfica. Mesmo sem estar ligada à Independência, a estátua do General Osório entrou no pacote de restauração porque fica na Praça Quinze
Escolha geográfica. Mesmo sem estar ligada à Independência, a estátua do General Osório entrou no pacote de restauração porque fica na Praça Quinze Foto: Rebecca Alves / Agência O Globo

Professora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getulio Vargas, e autora do livro “Cidade é patrimônio: uma viagem”, Lucia Lippi Oliveira destaca a importância de os 200 anos serem “uma oportunidade de repaginar os locais de monumentos e estátuas da cidade”. Ela lembra que nem todas as estátuas que estão na Praça Quinze e serão restauradas têm relação com a Independência. Lucia enfatiza ainda que estátuas e nomes de praças por vezes homenageiam personalidades diferentes.

— D. Pedro I, figura central da Independência, está na Praça Tiradentes — exemplifica.

A secretária explicou que um dos critérios que nortearam a escolha dos monumentos a serem recuperados foi a localização e não a relação direta com a Independência. Sendo assim, todos os da Praça Quinze entraram no pacote. O lugar é um dos principais palcos da História do Brasil. Das sacadas do Paço Imperial, Dom Pedro I fez seu pronunciamento em 9 de janeiro de 1822, que ficou conhecido como Dia do Fico. O episódio culminou com a Independência meses depois.

Estão lá, além de João Cândido, as estátuas de Dom João VI, de Tiradentes e o conjunto em homenagem ao General Osório, além do chafariz do Mestre Valentim e o monumento à primeira fotografia feita na América do Sul, retratando o paço, que também serão recuperados. Pelo mesmo critério, entram todos os monumentos da Quinta da Boa Vista, que está passando por um completo processo de revitalização, iniciado em maio. Lá estão sendo restaurados a estátua de Dom Pedro II, o busto de José de Bonifácio e pelo menos mais 14 peças, como o Pagode Chinês, o Templo de Apolo e portões históricos.

Longe de reparação

A Ponte dos Jesuítas, em Santa Cruz, na Zona Oeste, foi incluída no pacote por sua importância no período imperial, apesar de a construção ser anterior à época. Já as estátuas de Dom Pedro I, na Praça Tiradentes, e de José Bonifácio, no Largo de São Francisco de Paula, no Centro, entraram na lista por razões óbvias: o primeiro proclamou a Independência, e o segundo teve papel decisivo no movimento, entrando para a História como “Patriarca da Independência”.

Entre especialistas, há quem entenda que os monumentos escolhidos para serem recuperados estão longe de fazer reparação histórica. Para o professor Humberto Salustriano da Silva, com mestrado em história pela UFRJ e doutorado em educação pela UniRio, “tirando o João Cândido, a lista apenas legitima o que já está consolidado na memória que foi construída dos vencedores”

— É aquela memória que vai para os livros didáticos e silencia principalmente a população negra e originária do Brasil na construção da ideia de país. Ela continua sendo uma memória histórica ligada ao eurocentrismo.

“Os meus heróis na História do Brasil não viraram estátua”, diz Salustriano, reproduzindo fala do filme de animação “Uma história de amor e fúria”:

— A Inconfidência Mineira (1789), por exemplo, foi um movimento da elite mineira. E Tiradentes é homenageado. Quase dez anos depois, tivemos outro movimento (1798): a Inconfidência Baiana ou a Revolta dos Alfaiates. Por ser efetivamente popular, mesmo cronologicamente mais próxima da Independência, ela é apagada da História, e seus líderes estão esquecidos.

Professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), Martha Abreu também lamenta a falta de representatividade de negros tanto na escolha dos monumentos a serem recuperados quanto entre os que estão em áreas públicas:

— Cadê o Zumbi na lista para receber alguma intervenção? No seu cenário, o Rio é uma cidade muito branca.

Mesmo não sendo figuras ligadas à Independência do Brasil, Zumbi e João Cândido representam a luta pela liberdade. Na Praça Onze, o monumento a Zumbi dos Palmares teve uma de suas placas furtadas, está com rachaduras no piso e nos degraus da escadaria e só um de seus quatro mastros tem uma bandeira hasteada.

Embora não tenha encontrado traficantes de escravos na lista, Martha recorda que os monarcas foram governantes de um país que legitimava a escravidão. E que José Bonifácio defendeu a emancipação gradual.

Câmeras contra furtos

Arquiteto, estudioso da História brasileira e autor de um livro sobre São Cristóvão, Hélio Brasil Corrêa da Silva, de 91 anos, espera que a prefeitura leve adiante a ideia de recuperar, mas também de fazer a manutenção dos monumentos, independentemente da qualidade estética e de a homenagem ser ou não justa:

— Uma vez feita a homenagem, o monumento deve ser mantido.

Segundo a Secretaria municipal de Conservação, os serviços serão concluídos gradativamente até 6 de setembro, véspera do aniversário da Independência. Alguns monumentos estão bastante degradados por ação de furtos e vandalismo. É o caso do imponente conjunto em homenagem a General Osório, figura relacionada com a Guerra do Paraguai e a política externa do Império na região do Prata. A obra de Rodolfo Bernardelli, de 1894, está sem espada, além das 16 balas de canhão que ficavam sobre as colunas e o florão na base. Elementos de bronze levados desta e de outras estátuas serão fundidos no mesmo material para reposição. Após restauro, alguns monumentos vão ganhar câmeras de segurança, como as instaladas nas estátuas de Noel Rosa, em Vila Isabel, e de Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana.

A gerente de Monumentos e Chafarizes, Vera Dias, estima que, das cerca de 1.300 peças pela cidade, 40% estejam bem conservadas. Sobre Zumbi, disse que o foco no momento é a Independência, mas que o monumento é alvo de ações constantes e também terá seu momento de ser valorizado.

Fonte: Portal G1