Novo censo da população de rua deve embasar pedido judicial para internações involuntárias no Rio


RIO — Anunciado pelo prefeito Marcelo Crivella nesta segunda-feira, o censo municipal de população de rua deverá ser usado para embasar um novo pedido judicial para permissão de internações involuntárias na cidade. Em agosto, o município foi impedido pela Justiça de realizar acolhimento compulsório de moradores de rua, numa decisão que seguia a principal linha defendida por especialistas da área. Para o juiz, a prefeitura não apresentou justificativas técnicas para a medida. Já o prefeito afirmou que o aumento recente dos moradores de rua gerou “constrangimento à população formal” e contribuiu para a disseminação do Covid-19.

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As entrevistas para o censo começaram nesta segunda-feira e vão até a próxima quinta, num trabalho conjunto entre as secretarias municipais de Assistência Social e Direitos Humanos e de Saúde, além do Instituto Pereira Passos e da empresa Qualitest, contratada por licitação para o projeto. O último censo feito pela prefeitura, em 2018, gerou polêmica ao apontar um número populacional de 4.628 pessoas, enquanto um estudo de dois anos antes chegara à quantidade de 14.279. A Defensoria Pública do Rio costuma usar o dado de 15 mil pessoas, mas estimativas dão conta de aumento até 20% durante a pandemia.

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O prefeito Marcelo Crivella afirmou que houve aumento dessa população durante a pandemia, especialmente na Zona Sul. Ele citou que recebe diariamente vídeos de moradores, sobretudo de Copacabana, reclamando do problema.

— Pode ter certeza que Centro e Zona Sul tiveram muito mais população de rua do que o normal. A população de rua aumentou muito, gerando constrangimento enorme na população formal — afirmou.

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Durante a coletiva, o prefeito culpou a decisão judicial que impediu a internação compulsória pelo aumento de moradores de rua, o que, segundo ele, teria diminuído a disseminação de coronavírus entre a própria população de rua e na cidade. Com isso, admitiu que quer levar argumentos à Justiça, após resultado do censo, para um novo pedido judicial. Vale destacar que internações involuntárias já são permitidas por lei, após uma avaliação médica do paciente. Já recolhimento compulsório é uma ação distinta, que não dependeria de ato médico. Crivella não esclareceu se a medida valeria somente durante a pandemia.

— Com o censo e a política que vamos implantar, provavelmente tem aí a internação compulsória para esses momentos de pandemia, que pode se repetir. A partir da hora em que há aumento expressivo da população, essas coisas se impõem — explicou o prefeito, que disse que a população de rua é vetor de coronavírus. — Moradores de rua sem higiene necessária são vetores para aumentar disseminação da doença. Quem sabe agora depois do censo a gente consegue tomar as medidas necessárias.

Ao fim da entrevista, Crivella disse que deverá ter resultados do censo na próxima semana, mas a data ainda não foi confirmada. A prefeitura diz que, no final de semana, haverá uma estimativa do número de entrevistas realizadas. Coordenadora de projetos do IPP, Andrea Pulici explicou que esse censo será mais completo que o anterior, que teve objetivo de traçar um perfil sócio-econômico, e identificou apenas 4.628 moradores em situação de rua.

Juiz diz que prefeitura não apresentou justificativa técnica

Em 2012, a prefeitura assinou um Termo de Ajuste de Conduta com o Ministério Público do Rio (MPRJ) para disciplinar a política de atendimento à população em situação de rua. No sétimo parágrafo, a prefeitura se comprometeu a não realizar internações compulsórias. Por isso, em março, a prefeitura pediu à justiça permissão para descumprir esse acordo, alegando a necessidade de prezar pela saúde dos moradores em situação de rua, durante o período da pandemia.

Em junho, o juiz João Luiz Oliveira de Lima pediu para que o município apresentasse justificativas técnicas para o acolhimento compulsório com finalidade sanitária em meio à pandemia. No dia 6 de agosto, o juiz deu decisão liminar indeferindo o pedido do município. Em sua decisão, ele diz que não houve apresentação de estudos técnicos que comprovassem a necessidade das internações.

O juiz inclusive criticou a suposta solução: “Afinal, pretende o autor levar a população de rua – no momento instalada ao ar livre aonde notoriamente a propagação do vírus de torna mais difícil – para locais de confinamento fechados e em que o distanciamento mínimo entre as pessoas não é observado – bastando ver a distância de poucos centímetros entre as camas disponibilizadas aos usuários dos centros de acolhimento”, escreveu na decisão.

Em setembro, o juiz deu novo prazo de 30 dias para apresentação de provas técnicas por parte do município, e pontuou que, até aqui, “nem ele próprio (município) consegue junto ao seu corpo técnico produzir laudos que atestem as alegações iniciais”, por isso, o juiz não designou perícia.

Inês Guedes vive na Avenida Marechal Câmara, no Centro, há cerca de sete meses
Inês Guedes vive na Avenida Marechal Câmara, no Centro, há cerca de sete meses Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

Para o defensor Fabio Amado, do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, que ingressou na ação como parte interessada, o pedido da prefeitura é “inadequado em todos sentidos”, porque vai na contramão do que prezam especialistas da área e desumaniza um segmento já estigmatizado, e depois pela sua inviabilidade já que o município não tem capacidade de acolher todos moradores de rua. Segundo a prefeitura, existem 3.261 vagas no município, número muito abaixo da demanda. Por último, o argumento de melhorar a saúde da população num ambiente confinado não se comprova cientificamente.

— É uma perspectiva absolutamente equivocada, não se pode ignorar a humanidade dessas pessoas. Não são objetos, para serem removidos. O município deveria promover ações para esse segmento, e não internar à força — explica o defensor, que critica a condição dos abrigos públicos da rede municipal. — As unidades em péssimas condições e equipes foram reduzidas.

Segundo o defensor, acredita-se que o número de 15 mil moradores em situação de rua tenha crescido durante a pandemia. Por isso, o censo seria uma boa ferramenta para definição de políticas públicas, mas lhe preocupa seu uso para finalidades arbitrárias e discriminatórias.

Especialistas criticam prefeitura

Segundo o sociólogo Leonardo Pinho, vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, as estimativas até aqui dão conta de aumento de 12 a 20% de população de rua nas capitais do Brasil. Ele enxerga, por trás do discurso do prefeito, coadunação com a posição do governo federal, que privilegia o investimento em comunidades terapêuticas para tratamento de dependentes químicos e de pessoas em situação de rua. Na coletiva desta segunda, Marcelo Crivella destacou uma parceria da prefeitura com essas comunidade terapêuticas, em grande parte geridas por entidades religiosas, que recebem R$1000 de subsídio público mensalmente pro cada paciente em tratamento.

— A internação compulsória esconde por trás interesses econômicos de clínicas privadas e de comunidades terapêuticas de interesse religioso, ao qual o prefeito está ligado. É utilização de pessoas hipervulnerabilizada para justificar recursos públicos a essas entidades. Não é uma política de cuidado, de assistência social. É um discurso de cunho eleitoral, que pode agradar a parte da população que deseja ver as ruas “limpas”, mas que não têm conhecimento sobre as medidas que são de fato eficazes — explica Pinho, que defende a proposta do “moradia primeiro”, estabelecida na Política Nacional da Pessoa em Situação de Rua e reconhecida como experiência bem sucedida internacionalmente. — O investimento que vai para instituições privadas deveria ser usado no SUS, que já tem ferramentas para a assistência. Acreditamos que o certo é apostar em políticas de moradias transitórias, para fazer o processo de saída da rua (moradia primeiro).

Líder do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, Vania Rosa cita sua experiência pessoal para ilustrar o fracasso da política de internação compulsória. Ex-moradora em situação de rua, ela foi internada 11 vezes entre 2009 e 2016, mas sempre acabou voltando para as ruas.

— Nada compulsório dá certo. Pessoas de rua trazem vários elementos traumáticos e de agressão na vida. Elas precisam ser tratadas, não isoladas e confinadas como animais. Não é rezando que vai curar. Eu já fui punida em uma comunidade terapêutica porque não sabia rezar — explica Vania, que diz ter saído das ruas após tomar uma decisão individual e se juntar à militância pelos direitos humanos. — Ninguém quer estar na rua, é consequência por situação econômica, médica ou de violência.

Para Vânia, segundo suas estimativas em contato com associações e ONGs, o Rio deve ter hoje, população em situação de rua de cerca de 22 mil pessoas, muitos que chegaram nessa condição durante o período da pandemia.

Inês Guedes vive na Avenida Marechal Câmara, no Centro, há cerca de sete meses
Inês Guedes vive na Avenida Marechal Câmara, no Centro, há cerca de sete meses Foto: ANTONIO SCORZA / Agência O Globo

A especialista em saúde pública da UFRJ, Ligia Bahia, também critica o discurso do prefeito e a solução proposta sob a perspectiva médica.

— (Ae internar todos) vai virar um “covidário” — afirma ela, que também enxerga motivação eleitoral na proposta. — É uma política completamente equivocada, querendo mostrar serviço de faxina na véspera da eleição. Solução durante a pandemia seria ter moradia regular, em hotéis por exemplo, testagem e isolamento dos casos positivos. Nada de entulhar as pessoas.

‘Prefeito só quer saber de internar, mas não oferece condição boa nos abrigos’

No Centro, os moradores em situação de rua dizem que o bairro ficou esvaziado no início da quarentena, mas que agora a população aumentou com a chegada de pessoas novas que sofreram com a falta de renda e de emprego. O ponto em frente aos prédios do Ministério Público e da Defensoria Pública, na Avenida Marechal Câmara, é um dos tradicionalmente mais cheios. Vivendo lá há seis meses, Inês Guedes diz que conseguiu sobreviver porque as ações sociais, que doam alimento, dobraram as visitas.

— No início da pandemia, o Centro estava deserto. Conseguimos nos virar porque o pessoal da comida dobrou as visitas — afirma ela, que é trans e conseguiu mudar seu nome social na identidade civil há um ano. — Pelo menos na quarentena conheci meu namorado, jogando bola na Lapa.

Inês morava em Antares, mas já foi presa duas vezes, por roubo e furto. Há cerca de dois anos vive nas ruas e já passou por abrigos.

— Apesar de ter gente lá ajudando, os abrigos não têm condição boa. Eu consigo mais comida na rua do que no abrigo — responde ela, que recebeu, na semana passada, panfletos de agentes da prefeitura com informativos sobre o censo.

Há tantos anos na rua, Marco Antônio Pereira, de 61 anos, diz que já perdeu as contas de quanto tempo vive na Avenida Marechal Câmara. Segundo ele, aumentou consideravelmente a parcela de pessoas sem dinheiro que foram parar nas ruas.

— O prefeito só quer saber de internar, mas não oferece condição boa nos abrigos. É tudo sujo, sem banheiro, com bichos. Ás vezes passam aqui e recolhem nossa reciclagem, que é um ganha-pão. Se abrigo fosse bom, a rua ia ter metade dos moradores que tem hoje — explica ele, que cita que algumas pessoas chegaram a conseguir acesso ao auxílio emergencial do governo.

Pereira diz que no Sambódromo, espaço de acolhimento que a prefeitura abriu no início da pandemia, as pessoas voltavam após uma noite.

— Estamos na rua por necessidade. Problema que as medidas não funcionam. Teve um rapaz aqui que conseguiu um apartamento no Minha Casa Minha Vida, em Santa Cruz, mas quando chegou lá a casa já estava tomada pela milícia, e precisou voltar. Claro que eu queria ter meu quartinho, mas pelo menos estou aqui de cabeça erguida — explica Pereira, que concluiu, aos risos, com uma constatação em tom de galhofa. — Não conheço ninguém por aqui que pegou Coronavírus. Acho que o vírus tem mais saúde que a gente.

Redução do orçamento

Em relação ao orçamento municipal, a prefeitura não vem investindo tudo o que promete. Apesar de ter acrescido R$ 93 milhões ao orçamento da Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos em 2020, em relação ao ano anterior, a gestão só liquidou 58% (R$ 291,7 milhões). Para 2021, Crivella voltou a reduzir o orçamento da SMASDH, com proposta de um corte de 13% em relação ao orçamento atual (menos R$ 67,9 milhões).

Para a vereadora Teresa Bergher (Cidadania), que ocupou a pasta em 2017, o censo já deveria ter sido feito há quatro anos.

— O último censo (de 2018), foi uma brincadeira de mau gosto. Perdeu credibilidade. A secretaria possui estrutura para fazer o levantamento, mas não estamos vendo nada. Há descontrole total da situação. Os abrigos oferecem péssimas condições e nem se todos quisessem ser acolhidos seria possível, pois não há vagas suficientes.





Fonte: G1