Lá se vão quase nove décadas desde que, em 1932, o Rio era palco do primeiro desfile de escolas de samba. Desde então, foram 89 carnavais em que, todos os inícios de ano, sem exceção, o som das baterias sacudiu o coração dos cariocas. Uma sequência que será quebrada pela primeira vez na história em 2021, em virtude da pandemia da Covid-19. Em silêncio e vazia como nunca antes, a Marquês de Sapucaí terá, no lugar de alas, carros alegóricos e ritmistas, uma iluminação especial em homenagem às vítimas do coronavírus.
Nem sempre, porém, o carnaval carioca teve o Sambódromo como endereço. A primeira edição, em 1932, ocorreu na Praça Onze, não muito longe de onde, décadas depois, seria construída a Sapucaí. A idealização dos desfiles coube ao jornalista Mário Filho, que dá nome ao Maracanã. Dono do diário “Mundo Sportivo”, o irmão do escritor Nelson Rodrigues decidiu patrocinar a disputa entre as escolas para ter com o que preencher as páginas do jornal nos primeiros dias do ano, quando as competições de futebol e remo eram paralisadas. E não é que deu samba?
Os desfiles permaneceram na Praça Onze até 1942, exceto por 1934, quando ocorreram no Campo do Santana, também no Centro do Rio. Nos dois anos seguintes, as escolas mudaram-se para a Avenida Rio Branco em meio a uma polêmica: com a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, fazia sentido realizar a festa? Em 1945, o tom das críticas subiu, e parte da imprensa chegou a recursar-se a cobrir o evento, classificado como uma “insensatez”. Mantidos, os desfiles foram levados para São Januário, a sede do Vasco em São Cristóvão – foi a única vez em que um estádio de futebol recebeu as agremiações.
Nos 11 carnavais seguintes, com direito a racha entre escolas por um breve período, o carnaval carioca ganhou, mais uma vez, uma nova casa: a recém-inaugurada Avenida Presidente Vargas. Depois, a festa também passou pela Avenida Rio Branco, pelo entorno da Igreja da Candelária e pela Avenida Antônio Carlos, todas no Centro da cidade, além de um breve retorno à Presidente Vargas. Apenas em 1978 os desfiles chegaram ao local atual, na Avenida Marquês de Sapucaí, o nono endereço da folia ao longo de quatro décadas e meia. O Sambódromo, porém, ainda demorou mais alguns anos para ser erguido.
Projetado por Niemeyer e idealizado pelo antropólogo Darcy Ribeiro, numa dupla de fazer inveja a qualquer mestre-sala e porta-bandeira, o espaço foi inaugurado em 1984, dando início à era moderna do carnaval carioca, com as escolas dividindo-se em dois dias de apresentações. Batizado inicialmente como “Avenida dos Desfiles”, o que acabou pegando foi o apelido de Sambódromo cunhado pelo próprio Darcy, então vice do governador Leonel Brizola, em uma junção do brasileiríssimo “samba” com o sufixo “dromo”, de origem grega. A Sapucaí, aliás, carrega hoje o nome oficial de Passarela Professor Darcy Ribeiro, em uma homenagem pra lá de merecida.
Com o agigantamento dos desfiles, cresceram, também, a figura dos carnavalescos. E o primeiro a conquistar um brilho próprio, quase tão grandioso quanto o das próprias escolas, foi Joãozinho Trinta. Ex-aluno de Fernando Pamplona, outro baluarte do ramo, Joãozinho já colecionava oito títulos do Grupo Especial por Salgueiro e Beija-Flor quando o Sambódromo virou o palco da festa. Um dos seus momentos mais emblemáticos, porém, deu-se com um vice-campeonato, também pela Beija-Flor, em 1989: com o enredo “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, a escola levou um Cristo Mendigo para a Avenida. A alegoria acabou coberta por um saco preto, em uma imagem que entraria para a história do carnaval e, por que não?, da cidade do Rio. O primeiro – e único – título no novo endereço da festa só viria em 1997, em outro desfile marcante, dessa vez na Viradouro, que performou o enredo “Trevas! Luz! A explosão do universo”. Esse foi um dos dois únicos campeonatos conquistados pela agremiação de Niterói – o segundo viria apenas no ano passado, em 2020.
Na década de 90, a principal marca foi a do perfeccionismo de Rosa Magalhães, multicampeã pela Imperatriz Leopoldinense. Se não empolgavam tanto assim, os desfiles eram tecnicamente impecáveis, enfileirando notas máximas dos jurados. Ao todo, Rosa conquistou sete títulos, seis deles no Sambódromo, mesmo número de conquistas na Sapucaí de outro craque do carnaval: Alexandre Louzada.
A próxima grande revolução viria pelas mãos de Paulo Barros, que já estreou no Grupo Especial levando a Unidos da Tijuca ao segundo lugar. O carro do DNA humano, com integrantes da escola ostentando movimentos ensaiados, encantou público e crítica como há muito não se via, e a presença de alegorias com o mesmo recurso coreográfico virou uma tendência. O primeiro título demorou a vir, apenas em 2010, com outro desfile histórico sobre o mundo da mágica, em que a comissão de frente da Tijuca brilhou tanto, mas tanto, que passou meses a fio apresentando-se mundo afora.
Como a festa não para de se reiventar, nem de produzir grandes artistas, nos últimos anos mais um grande nome despontou no cenário carnavalesco, e repetindo um feito logo de quem? Ele, Joãozinho Trinta. Estreando no Grupo Especial em 2016, Leandro Vieira debutou levando a Mangueira ao título, em um belíssimo tributo a Maria Bethânia. Nos anos seguintes, Vieira especializou-se em desfiles críticos, com forte viés social. A estratégia rendeu mais um campeonato à Verde e Rosa, em 2019, dessa vez abordando a temática dos marginalizados pela história do Brasil.
Enquanto a Sapucaí permanecerá à espera de novos personagens e momentos inesquecíveis, o mundo vai estar na torcida para que a vacina garanta nota 10 no quesito evolução. Que no ano que vem, com a pandemia controlada, o coronavírus não atravesse mais as nossas vidas – e nem o samba.
Fonte: G1