inflação e escassez de material são o desafio


João Nogueira cantava que o “samba é ciência e com consciência / só ter paciência que eu chego até lá”. É o que diz a letra de “Nó na Madeira”, de 1975, mas que parece juntar em dois versos palavras que expressam tanto sobre o que está em jogo nos tempos atuais, quando os desfiles da Sapucaí foram adiados, anteontem, para o feriado de Tiradentes, em abril, devido ao avanço da variante Ômicron do coronavírus. Nos barracões das escolas, dirigentes, artistas e outros profissionais que fazem o espetáculo garantem que os preparativos não vão parar. Agremiações como Mangueira, Vila Isabel, Unidos da Tijuca e São Clemente destacam, inclusive, que vão manter o cronograma para finalizar os trabalhos ainda em fevereiro. Outras podem até desacelerar o ritmo, mas sem perder a cadência. E quando tudo, finalmente, for para a Avenida, concordam os sambistas, será a afirmação da resistência da manifestação cultural que representam.

— Recebemos a notícia (do adiamento) como uma bomba — diz Fernando Horta, presidente da Tijuca. — Todo mundo se preparava para desfilar no final de fevereiro. Vamos deixar 30% dos acabamentos por fazer? Não. Vamos concluí-los. Até porque os trabalhadores dos barracões querem receber por sua produção.

A preocupação com os operários da folia também é de Fernando Fernandes, presidente da Vila, que tem a confecção de fantasias e alegorias em estágio bastante avançado, e tampouco vai pisar no freio:

— Temos que respeitar a saúde, que está em primeiro lugar. Mas não podemos deixar de pensar nos profissionais. Não se pode deixar as pessoas que trabalham com a gente desamparadas.

À frente da Estação Primeira de Mangueira, Elias Riche é outro dirigente que não pretende fazer alterações no cronograma de concepção do desfile. No entanto, ressalta a importância da garantia de recursos financeiros para isso:

— Pretendemos manter o ritmo desde que a gente tenha garantidos os aportes que estão para ser feitos pela Liesa, pela prefeitura e pelo Estado. O que pode atrapalhar pode ser a transmissão da Covid-19, mas nossa ideia é manter o ritmo e deixar pronto até o dia 20 de fevereiro, para não prejudicar os profissionais do carnaval.

Já na Beija-Flor, mais dois meses para aprontar o desfile pode significar um show num nível ainda mais elevado.

— A decisão sobre o adiamento foi certíssima, devido à pandemia. E, para nós, ganhamos mais tempo. Vamos fazer, talvez, o maior espetáculo já visto na Sapucaí — diz Almir Reis, presidente da azul e branco de Nilópolis.

Mercado modificado

O certo é que todos esperam uma catarse depois de muito suor e jogo de cintura posto à prova. Isso porque a emergência da Covid-19 não só impediu os desfiles do ano passado. Mas afetou empregos e provocou mudanças na cadeia produtiva do carnaval. Quando as atividades na Cidade do Samba foram retomadas, em agosto de 2021, deparou-se com uma série dessas consequências, e começou uma corrida por soluções, entre elas, uma verdadeira febre do uso de plumas artificiais, feitas de tecido, que parecem ter vindo para ficar. Elas foram uma das saídas para dois problemas agravados pela pandemia: a escassez de material usado nas fantasias e alegorias, sobretudo, o importado da China; e uma inflação que, assim como corroeu o poder de compra dos brasileiros, levou às alturas preços de itens básicos numa agremiação, às vezes atrelados ao dólar.

O artista Bruno de Oliveira trabalha no barracão da Imperatriz Leopoldinense
O artista Bruno de Oliveira trabalha no barracão da Imperatriz Leopoldinense Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Assistente da carnavalesca Rosa Magalhães, na Imperatriz, Bruno Oliveira diz ainda que parte da mão de obra qualificada não retornou. Foi absorvida, por exemplo, por empregos na cenografia das TVs. Novas equipes, então, tiveram de ser treinadas. Anteontem, elas estavam prestes a começar um serão, até a meia-noite, dentro do planejamento da escola, entre as mais adiantadas da Cidade do Samba, de concluir o barracão com folga para o carnaval, até então, em fevereiro. Foi quando receberam a notícia do adiamento.

— Foram todos liberados às 18h. Na segunda-feira (amanhã), já iniciamos o trabalho com um grupo menor, porque tem toda uma questão de custo operacional, com luz, água e folha de pagamento, que precisará ser equacionada com essa nova data. O impacto na vida desses trabalhadores é uma preocupação. Por outro lado, escolas que estavam atrasadas terão um oxigênio a mais. Ganha o público, que verá um espetáculo mais nivelado — diz Bruno, que um atrás, durante um ensaio fotográfico do GLOBO na Cidade do Samba parada devido à pandemia, circulava pelo barracão da verde e branco praticamente sozinho.

Com desfile em fevereiro ou abril, o que não muda é o cenário do mercado para se conceber os desfiles. E, nesse quesito, os compradores das escolas têm tido de fazer de um limão uma limonada. É a função de Paulo Henrique Caetano, no Salgueiro; Evania Maria de Almeida, a Vaninha, na Grande Rio; e Cristiano Paim, na Estácio de Sá. Eles cotam que, de 2020 para cá, valor de um tubo de ferro, por exemplo, passou de R$ 17 a R$ 50, dependendo da espessura, para R$ 70 a R$ 100. Já um galão de 3,5 litros de cola fria, que se podia comprar até por R$ 38, subiu para, no mínimo, R$ 70. O departamento financeiro de outra escola, a Mocidade Independente, calculou as diferenças percentuais dos preços que conseguiu obter entre o desfile de dois anos atrás e agora: aumento de 25% das colas quentes e frias, de 30% do ferro, da madeira e do espelho, e de 40% das resinas e fibras.

— No Salgueiro, planejamos um carro que seria todo revestido de espelho, cuja folha está custado cerca de R$ 600. Não vai ser mais assim. Recorremos a outro material, o espelho plástico, feito de PET, com a folha a R$ 280. E vai ficar bonito. Jogou a iluminação, fica tudo lindo — conta Paulo, o comprador da escola. — O tradicional paetê só escapou desses aumentos elevados porque há uma fábrica aqui mesmo, em Nova Friburgo.

Troca na plumagem

Já o quilo de penas, diz Paulo, dobrou, de R$ 1.500 para R$ 3 mil. Foi a necessidade de baratear esses custos, além de questões relativas à sustentabilidade, que levaram muitas escolas a adotarem as plumas artificais. Só no Salgueiro, são 9 mil. Na Tuiuti, elas estarão nas fantasias das alas e das composições das alegorias, segundo a escola, com o benefício de que, mesmo com a chuva, não vão desbotar, nem perder o brilho. Tem ainda outra vantagem: não depende das importações chinesas nem da variação do dólar.

Um dos fornecedores é André Rodrigues, da Eco-Pluma, que também é um dos carnavalescos da Beija-Flor e à frente de mais duas escolas, a Acadêmicos do Sossego, no Rio, e a Mocidade Unida da Mooca, em São Paulo. Foi ao longo da pandemia, entre 2020 e 2021, que ele desenvolveu seu principal produto, as plumas de tecido, cortadas com uma máquina digital, com uma fábrica montada em Quintino, na Zona Norte do Rio.

— As escolas de samba são um movimento muito importante, seja para ser pensado de maneira mais acadêmica, pelo viés antropológico ou histórico, seja também das soluções visuais. Elas tratam questões sociais necessárias, mas ainda precisam ser um grande show. As plumas são um produto desenvolvido para o carnaval, que deixam as escolas muito mais livres da variação do dólar, por exemplo — diz André, que fornece plumas não só para escolas do Rio, como as de São Paulo.

A única questão é que a demanda está altíssima. Os compradores também têm uma extensa lista de materiais corriqueiros do carnaval que escassearam ou, simplesmente, sumiram do mercado, segundo eles, devido às barreiras na importação, além do receio dos fornecedores de não haver carnaval ou mesmo que as escolas não tivessem recursos para pagar as compras, forçando que muitos não renovassem estoques. Na relação, são citados plásticos vindos da China, alguns tipos de tecido, aljofres (fios com bolinhas muito usados na decoração) e galões (fitas de tecido utilizada em acabamos).

Compras em São Paulo e na internet

Na Grande Rio, Vaninha conta que a escassez é ainda maior no Rio, o que tem levado as escolas a intensificarem as compras em São Paulo, seja nas lojas do Brás ou da Rua 25 de Março, ou em fábricas do interior paulista, como na cidade de Americana, de onde virá boa parte do tecido que atravessará a Avenida no próximo desfile.

— Para o carnaval que estamos preparando, já fui a São Paulo quatro vezes. Numa das viagens, um amigo me indicou uma loja para comprar pedrarias. Quando chego lá, era um lugar maravilhoso. Encontrei um pacote com 200 peças a R$ 20. Dei aquela chorada, saiu por R$ 18. E eu, quando vejo pedra, quero até abraçar— conta ela.

A musa Letícia Guimarães no barracão da Inocentes de Belford Roxo: compra de material para o figurino em site chinês
A musa Letícia Guimarães no barracão da Inocentes de Belford Roxo: compra de material para o figurino em site chinês Foto: Hermes de Paula / Agência O Globo

Pedrarias, aliás, também estão muito caras ou em falta, o que afeta até as beldades do carnaval. Musa da São Clemente e Rainha da Inocentes de Belford Roxo, Letícia Guimarães não achou no Rio a cor de swarovskis que precisava para um de seus figurinos. Tentou a sorte em São Paulo, mas tampouco achou. Resolveu, então, arriscar: comprar pela internet, num site chinês:

— A promessa é que chegue até dia 14 de fevereiro. Se não chegar, não sei o que fazer! Pior que era uma cor que, antes, se conseguia comprar no Rio.

Na Estácio, Cristiano Paim recorreu a uma substituição das pedras de acrílico. Sugeriu ao carnavalesco uma troca por acetato, trabalhado numa técnica que aprendeu quando, no auge da pandemia, precisou trabalhar fazendo decoração de festas e arranjos.

— O carnaval de 2022 será o da criação. Acho até que quem criasse mais deveria levar o título, porque está tudo complicado. Até o preço do diesel nos afeta, porque é o combustível dos carros alegóricos. E o carnaval dá tanto emprego… Só na Estácio, mesmo no acesso atualmente, são cem pessoas trabalhando — conta ele.

Dificuldades no acesso

As escolas que foram ao mercado mais tarde foram as mais prejudicadas. No Especial, aquelas que não tinham reservas nem outras fontes de renda atrasaram mais seus preparativos. Mas é na Série Ouro, a divisão de acesso do carnaval, que a situação se agrava mais, uma vez que só no início de janeiro elas receberam, efetivamente, a primeira parcela (33,3% do total) dos R$ 800 mil da subvenção da prefeitura às agremiações do grupo. Nesse cenário, no Império da Tijuca, o presidente Antônio Marcos Teles, o Tê, afirma que tem um grupo que trabalha com ela há dez anos e, graças a isso, é possível tocar o carnaval.

— Eles trabalham no amor. Se não recebermos todas as verbas prometidas, será o quarto ano que não vou conseguir pagá-los — admite.

Mesmo na União da Ilha, mais estruturada após anos no Especial, as dificuldades se repetem. Presidente Nei Filard lembra, por exemplo, que as incertezas da pandemia prejudicam a captação de patrocínios e apoios.

— Com poucos eventos na quadra, não consigo, por exemplo, negociar uma parceria para um banner nos camarotes. Também não temos tido arrecadação de quadra. Temos feito ensaios num estacionamento ao ar livre, com bateria e uma a três alas apenas. Dependemos de amigos e da subvenção da prefeitura. Se a próxima parcela não sair no período prometido, até o fim de janeiro, estou com a água no pescoço — diz Nei.

Para essas escolas, o adiamento para abril pode significar mais tempo para tentar superar as dificuldades. No Império da Tijuca, no enanto, o carnavalesco Guilherme Estêvão diz que a escola vai manter o cronograma já previamente definido antes do adiamento.

— Recebemos isso com um pouco de ansiedade e uma dose de apreensão, porque é um projeto de quase dois anos já, por causa do cancelamento que tivemos (do carnaval, por causa da pandemia). Isso gerou uma crise de abastecimento séria no carnaval hoje. A gente fica com receio, mas torcendo para que de fato se realize em abril, mas ao mesmo tempo questionamos “por que só o carnaval é cancelado nesse momento, enquanto outras atividades permanecem gerando aglomeração?” — diz o carnavalesco.





Fonte: G1