Fernanda Tuxi é fotógrafa, dona de hotel, bipolar e borderline. Com mais de uma dúzia de internações, ela viu a sua história mudar durante uma delas. Foi quando idealizou a Casa Tuxi, uma hospedagem inclusiva que só trabalha com pessoas em tratamento psiquiátrico e em situação de vulnerabilidade. A única exigência é que a medicação e a terapia estejam em dia. Atualmente, a equipe emprega oito pessoas nessas condições. Mas após sete anos, o lugar está sem fiador nem contrato e precisa arrecadar dinheiro para pagar o seguro fiança e continuar ativo.
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— Aqui é uma resposta a tudo que já passei no mercado de trabalho como paciente psiquiátrica. As pessoas apontam a gente como sendo de alta periculosidade, pessoas doentes, mas o que é ser normal? — questiona Fernanda. — Precisava encontrar uma forma de recomeçar e fiz daqui o meu projeto de vida.
A maioria dos funcionários que já passaram por lá vem dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) da prefeitura, que atende pessoas com sofrimento mental, de moderado a grave, com foco na reintegração social, autonomia e geração de renda. Para o superintendente de Saúde Mental da Secretaria municipal de Saúde, Hugo Fagundes, projetos como o da Casa Tuxi são fundamentais.
— É uma iniciativa fantástica criada a partir da sensibilidade de quem viveu um momento difícil, tem o peso do estigma e, mesmo assim, se propôs a criar alternativas. — avalia Fagundes. — Eles conseguem dar um pouco de esperança para gente em meio à crueza dos nossos tempos, resgatando a autoestima dessas pessoas e fazendo com que elas andem de cabeça erguida. Espero que experiências como essa se multipliquem, com mais espaços de cidadania, respeito e qualidade de vida.
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A inserção do mercado de trabalho é um dos principais pilares do lugar. O presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antônio Geraldo da Silva, ressalta que é importante entender que a doença mental é como qualquer outra.
— O mercado de trabalho é um ambiente difícil para os que têm doenças mentais porque ainda existe muito preconceito. O medo de ser rejeitado e discriminado faz com que o sujeito que tem ou teve uma doença mental não a revele — explica o médico. — Quando o trabalhador apresenta uma condição cardiovascular, diabetes ou até mesmo um trauma ósseo, como ele é tratado pelo médico do trabalho? Por que isso muda quando se fala de depressão ou transtorno bipolar? O paciente em tratamento pode e deve continuar a trabalhar sem prejuízos.
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Ter um empregador que entenda perfeitamente essas adversidades é coisa rara no mercado. Fernanda sabe bem o que é isso.
— Recai um estigma sobre nós como pessoas incapazes, mau caráter e perigosas, o que nós não somos. Quando você sai de uma internação, tem vergonha de ressocializar. Tem medo de dizer no trabalho que tem o horário da terapia, que toma remédio — conta Fernanda. — É exatamente por isso que a Casa Tuxi existe.
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Doutor em Filosofia, Pedro Poncioni, de 37 anos, tem o sonho de dar aula. Enquanto esse dia não chega, ele precisa atuar em outras áreas. Mas encontrar trabalho nem sempre é tão simples. Ele conheceu a Casa Tuxi pela sua mãe, que viu um post em uma rede social recrutando pessoas bipolares para trabalhar.
— Falei: que loucura é essa? Sou bipolar e o mercado de trabalho é muito difícil para mim. Tenho questões psiquiátricas — conta ele, dizendo que não conseguia ficar mais de três meses num lugar. — Tinha dificuldade com a rotina, em receber ordens. Mas hoje estou em dia com a medicação, e aqui é todo mundo da mesma tribo, estou em casa.
Pedro teve que aprender um novo ofício, o de camareiro. E tem muito orgulho disso.
— Não é sobre limpar o chão e fazer a cama. É cuidar de uma casa que cultiva valores. E isso me dá esperança, me dá um norte — diz ele, que já se matriculou num curso para se especializar na função. — É uma casa de acolhimento e de empatia com a vulnerabilidade do outro. Saio energizado daqui. Estou aprendendo a socializar, a ouvir críticas.
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Aos 26 anos, a estudante de biblioteconomia Caroline Marques ficou um ano e meio sem trabalho e se surpreendeu ao se deparar com uma vaga de recepcionista e atendente de bar, só que com diagnóstico de borderline. O inglês era diferencial.
— Nunca tinha visto isso. Geralmente, tenho que esconder que sou border. Nem todo mundo aceita que você possa ter um surto — relata Caroline, que já teve uma crise no novo emprego. — Mais do que um trabalho, ganhei acolhimento, passei a aceitar mais a minha patologia, e isso me faz melhor. Ter pessoas que te entendem já ajuda a você não chegar a um estado grave.
Maria Leite, de 42 anos, está na Casa Tuxi desde o início, entre idas e vindas. Já chegou a trabalhar lá em troca de moradia, mas a maior recompensa nunca foi financeira.
— Aqui você pode ser verdadeiro, pode falar abertamente o que está sentindo e ser respeitado.
Já no check-in, depois das boas-vindas, a equipe reforça que o lugar é um hotel de inclusão psiquiátrica e às vezes é preciso ter um pouquinho de paciência, mas que todo o combinado será entregue. E como os hóspedes reagem?
— Da mesma forma que a gente evoluiu como time, sinto que o universo está corroborando também com a frequência das pessoas que chegam aqui. Hoje, com essa comunicação mais aberta e direta, falando sobre a nossa patologia, as pessoas são muito mais empáticas do que as que chegavam antes.
De passagem pelo Rio, a influenciadora Isabella Lopes ficou sabendo da Casa Tuxi por uma amiga que trabalha com hospedagem.
— Ela disse que tinha um lugar que era a minha cara, e tinha razão. É um hotel com vibe de hostel, colorido, que instiga a minha criatividade e tem um café da manhã sensacional — diz Isabella, que ficou cinco dias por lá. — O trabalho de inclusão que a Fernanda faz aqui precisa ser falado, é inspirador. Recomendo um monte.
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Instalada num sobrado dos anos 1930 em Botafogo, a Casa Tuxi tem 14 suítes, piscina, bar, day use, e as diárias variam entre R$ 250 e R$ 550. Com o contrato de aluguel vencido, o novo desafio agora é arrecadar verba para o seguro fiança do imóvel. Para isso, Fernanda lançou uma vaquinha virtual, com recompensas que vão desde um drinque até uma festa com direito a 40 convidados. Ainda falta bastante para bater a meta e o tempo é curto, pouco mais de 20 dias, mas a causa já arrebatou contribuições ilustres.
— É importante pensarmos a inclusão como meta para nossa evolução enquanto sociedade. Todos querem fazer parte, se sentir pertencentes e precisamos ao máximo tornar isso uma realidade — diz o humorista e apresentador Fábio Porchat, um dos incentivadores do lugar. — Gente precisa de gente!
Fernanda conta que viu, durante a pandemia, empreendimentos vizinhos fecharem as portas, mas o hotel continua de pé:
— Não está fácil, mas não posso parar — diz Fernanda. — Muitas pessoas falam que é lindo o que eu faço, mas não é caridade. Quero mostrar que somos parte de um grupo de pessoas excluídas lá fora injustamente. A vida é feita de altos e baixos, quando fica reto, a gente morre.
Fonte: Portal G1