Grande Rio apresenta fantasias de desfile sobre Exu


A potência criativa, voz das ruas, entidade da mediação, da comunicação e da energia vital… É esse o Exu que a Acadêmicos do Grande Rio exaltará no próximo carnaval, num desfile que pretende desconstruir uma imagem estereotipada dessa divindade das manifestações de matriz africana que costuma ser demonizada no rastro da intolerância religiosa no Brasil. As vestimentas para cumprir essa missão foram divulgadas esta semana pela escola, num ensaio do fotógrafo Custodio Coimbra com trabalhadores da agremiação como modelos.

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São fantasias, afirma Leonardo Bora (carnavalesco da escola ao lado de Gabriel Haddad), que traduzem a vibração de Exu que se quer mostrar na Avenida, propícias aos rodopios, ao gingado e aos movimentos mais expansivos. E que nada terão a ver com a ideia de um “enredo pesado”, que alguns insistem em atribuir à temática da tricolor de Duque de Caxias.

— Esse processo de demonização, que tem relação com as práticas do racismo religioso, é muito forte e presente nos menores detalhes. A gente escuta repetidas vezes a leitura de que é um “enredo pesado”. Somos questionados sobre como estamos lidando com ele, com um “samba pesado”. No nosso entendimento, essa é uma expressão cotidiana desse racismo religioso e dessa prática de demonização. A gente parte do pressuposto de que Exu não é o diabo das cosmogonias judaico-cristãs. É outro ponto de vista. As fantasias vão na contramão desse pensamento colonial — afirma Bora.

Os povos de rua serão representados na Avenida
Os povos de rua serão representados na Avenida Foto: Custodio Coimbra/Divulgação

O contexto no qual se insere o enredo é delicado. Até agora em 2021, entre todos os estados do país, o Rio é o campeão de denúncias de violação dos direitos humanos com motivação religiosa, segundo o painel de dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. De acordo com números atualizados até 25 de outubro, foram 226 denúncias, cerca de 25,6% do total registrado no Brasil (881). A capital é o município brasileiro com mais relatos (138), enquanto Duque de Caxias, onde está localizada a Grande Rio, é a quinta colocada no ranking, com 20 denúncias, atrás apenas de Rio, São Paulo, Salvador e Belo Horizonte.

As religiões de matriz africana costumam estar no centro desses ataques. Na Baixada Fluminense, nos últimos anos, traficantes que se dizem evangélicos têm acuado e ordenado o fechamento de terreiros de umbanda e candomblé. Interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), o babalaô Ivanir dos Santos ressalta que são cerca 50 casas religiosas ameaçadas atualmente na região. Muitas têm sido depredadas, como ocorreu no início deste ano no Terreiro Tenda Espírita Maria Conga e Caboclo Boiadeiro, em Caxias, onde só as imagens de Exu não foram quebradas, porque estavam numa sala trancada.

Bora explica que não haverá um setor para abordar explicitamente os efeitos dessa intolerância. Mas o próprio enredo será um ato contra a intolerância religiosa. E, nesse caminho, dialogará com o último carnaval da escola, quando foi vice-campeã, em 2020, homenageando o “rei do candomblé” Joãozinho da Gomeia. Esteticamente, no entanto, o carnavalesco afirma que a proposta para 2022 é diferente. A entidade será apresentada em sete facetas, com figurinos para representar o que Bora chama de “visão exuzíaca” de mundo.

— É essa celebração, potência, força… Algumas das fantasias (do ensaio) são bem centrados no momento do desfile que vai enfatizar o povo de rua, os exus catiços, produto dessas cruzas ocorridas em território brasileiro. Aparecem a figura do malandro, da pombagira de cigana, do povo da calunga pequena (o cemitério), da dama do cabaré… Mas é apenas um pedaço do enredo. Há outras perspectivas, como o Exu ancestral africano, o dos corpos expansivos das festas e da ocupação das ruas, como no caso do bate-bola, e a memória de Exu na história do carnaval carioca — revela Bora.

Foto: Custodio Coimbra/ Divulgação

Ele lembra que, nas década de 1990, a própria Grande Rio saudou o orixá em seus sambas. Exu aparecia em desfiles clássicos da escola, como “No mundo da lua”, de 1993, e “Os Santos que a África Não Viu”, de 1994.

— Assim como em 2020, esse enredo também evoca uma ideia de pertencimento, comunidade, diálogo com as tradições de Duque de Caxias. Isso é fundamental para se pensar a escola de samba enquanto associação comunitária e corpo coletivo, que é uma das ideias para se pensar Exu — conta Bora.

É um resgate, segundo o carnavalesco, que contribuiu para que o enredo não tivesse qualquer resistência dentro da agremiação. Fora da escola, porém, a transmissão da escolha de samba-enredo da tricolor suscitou tanto elogios ao tema quanto postagens que o criticavam. Para o babalaô Ivanir dos Santos, retratar Exu na desfile será mais um momento em que as agremiações, além de evocarem as memórias de suas comunidades, levam para holofotes um ato de resistência na Avenida.
— É um grupo religioso perseguido o tempo todo. E se tem um momento em que é mostrado de forma positiva é no carnaval. Em tempos de tanta intolerância, tratar dessa cultura afrorreligiosa é muito positivo. Tem Exu na Grande Rio, Oxóssi na Mocidade… O desfile em si já é um grito contra a intolerância religiosa —diz ele.

No barracão: mais uma fantasia da tricolor de Caxias para 2022
No barracão: mais uma fantasia da tricolor de Caxias para 2022 Foto: Custodio Coimbra/Divulgação





Fonte: G1