Família trabalhou na construção do Cristo Redentor e já foi guardiã das chaves do monumento


Na infância, Magda Gonçalves, hoje com 70 anos, precisava embarcar no trenzinho do Corcovado toda vez que ia visitar os avós paternos. Os dois, José Manoel e Custódia, ambos portugueses, moravam praticamente nas nuvens, a 710 metros de altura, quase que aos pés do Cristo Redentor, numa casa de madeira simples, com criação de pato, galinha e porco no quintal e abastecida com água de uma nascente da Floresta da Tijuca. Seu avô foi o primeiro vigia do Cristo, chegando lá ainda na construção do monumento. Mais do que cuidar da segurança, ele por muitos anos foi praticamente o único a zelar pela conservação do monumento, papel que seu filho Floriano e também sua neta herdariam depois. Magda recorda que, toda vez que entrava no trem, sentava no primeiro banco — como ia muitas vezes sozinha, tinha que ficar sob o olhar do motorneiro — e tirava um cochilo. Um sonho era recorrente nas viagens: nele, aparecia uma mulher vestida de branco e com um xale azul na parte da frente do trenzinho.

— Na minha cabeça, isso queria dizer que estava indo para a casa de Jesus e de Nossa Senhora Aparecida. E que vovô e vovó moravam na casa de Cristo — conta Magda, que cresceu, formou-se em Pedagogia e virou uma empresária no Corcovado, mas não mudou de ideia sobre aquela visão. — Para mim, o Cristo Redentor sempre foi Jesus, e estar lá em cima é o mesmo que estar perto dele.

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A família de Magda tem nove décadas de Cristo Redentor. Seu pai, Floriano Gonçalves, e seu padrinho, Dilson, eram quem cuidavam da estátua, numa época em que pouco se via a presença da Igreja lá no alto. Décadas antes de a manutenção do monumento passar a ser feita por alpinistas com modernas técnicas de restauro, os dois irmãos se aventuravam, duas vezes por ano, a subir a escultura sem cordas amarradas aos corpos e carregando baldes, vassoura, escovinhas, água e sabão. A lavagem do Cristo era também uma espécie de ritual de devoção, que fazia arrepiar a espinha dos turistas que testemunhavam a cena e era motivo de desespero para as mulheres da família.

Até hoje a coragem dos dois, registrada num pequeno filme, de 1969, é de espantar. Na gravação, de Roland Henze, eles usam uma escada de madeira para ultrapassar a base do monumento e chegar aos pés do Cristo. Sobem até os braços e o alto da cabeça. Jogam água e esfregam com panos a “pele” do Redentor, feita de pequenas pastilhas triangulares de pedra-sabão. De trilha sonora, o barulho constante do vento. Dilson, que aparece descalço, explica: “Ganhamos nada. Fazemos tudo por amor à religião. Sim, é arriscado, mas cada qual tem o seu destino”.

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A saga dos Gonçalves no Rio a 710 metros de altura começou com José Manoel, português de Bragança e que, já no Brasil, deixou o trabalho nas plantações de café em Cantagalo, no Centro-Norte Fluminense, ao lado da mulher, Custódia, para ser o vigilante da construção do monumento erguido pelos católicos. Magda guarda a carteira de trabalho do avô assinada pelo engenheiro Heitor Levy, mestre-de-obras do empreendimento e braço direito do engenheiro Heitor da Silva Costa, que projetou a estátua. O imigrante português gostava de contar para a neta histórias do passado, como de pretos maltratados, presos e amarrados, que ele via nas fazendas de café no começo do século XX, quando as covardias da escravidão deveriam ser coisa do passado. Quando não estava fazendo a manutenção do monumento — ele varria diariamente o platô e a escadaria — passava horas a fio enrolando fumo sentado num tronco no quintal de casa, que ficava bem na chegada do trenzinho.

A família Gonçalves: 90 anos ligada ao Cristo Redentor
A família Gonçalves: 90 anos ligada ao Cristo Redentor Foto: Agência O Globo

— Vovô, na hora do café da manhã e do almoço, não deixava ninguém conversar. Nas férias, eu amava ficar lá em cima. Era uma festa. Eu brincava muito com as pastilhas de pedra sabão do Cristo. Era o melhor giz para fazer amarelinha no chão. E dormia em colchão de capim, e vovó passava álcool no meu pescoço para que eu não tossisse. O fogão era a lenha, e tudo era feito com a banha dos porcos do quintal — recorda Magda, que, quando tinha 3 anos, deixou com o pais São Cristóvão para viver numa casa de vila no Cosme Velho, bem perto da estação de trem.

Floriano era um comerciante nato. Ainda muito jovem, vendia laranja descascada para os turistas que subiam o monumento. Depois, ele começou a comprar santinhos e revender. Até que recebeu autorização de um monsenhor para ter lojinha. As primeiras, na verdade, eram barraquinhas de jornaleiro com rodinhas. Floriano era quem guardava tanto a chave que dá acesso ao interior da estátua quanto da capela, onde à noite protegia as barracas. Ele conhecia bem o tempo no local: ao sinal de chuva, saía empurrando às pressas contra o vento a bancas para dentro do templo.Suas banquinhas vendiam terços, quadros de borboleta e jogos de xadrez e gamão feitos de madeira com a vista do Cristo. Sua presença era tão forte no cartão-postal que, nos anos de 1990, ele foi sequestrado. Os bandidos acreditavam se tratar de um milionário. Floriano, que dizia no cativeiro ter sentido o cheiro das rosas que colocava para Nossa Senhora Aparecida, saiu ileso dessa história.

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O monumento, antes da chegada dos órgãos ambientais federais, nos anos de 1960, ficava aberto a quem quisesse de dia e de noite, sem bilheteria.

— À noite, na estrada tinha corrida de rolimã. O Cristo ficava aberto, e não havia perigo nenhum. Havia ali perto o Hotel Paineiras funcionando e uma família que trabalhava para o hotel — diz Magda, que perdeu o avô em 1966 e, o pai, em 2004.

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Magda, nesse momento, já cuidava dos negócios, incluindo o restaurante do Cristo, do qual seu pai havia se tornado sócio. Por lá, viu muita gente ilustre passar. Barack Obama parou em sua lojinha e tirou fotos com a comerciante, que lhe ofereceu de presente uma réplica de 21 centímetros. Na visita do Papa João Paulo II, ela preparou um super café da manhã, mas o pontífice, na sua passagem relâmpago pela estátua, acabou não parando no restaurante. Sob os cuidados de Magda, ficavam as chaves do monumento e a escada de madeira usada para chegar até a entrada da estátua:

— A escada ficava na antiga residência do vovô (que, com o tempo, virou de alvenaria e passou a ser usada como depósito e lugar de apoio dos funcionários). Só era retirada para atender visitas quando meu pai recebia autorização da Arquidiocese para isso. Quando a igreja reassumiu o Cristo e botou gente lá (a partir de 2006), meu pai já tinha morrido e achei por bem destruir a escada, por segurança. Também fiquei com a chave da capela por muitos anos — afirma a empresária.

Carteira de trabalho de José Manoel Gonçalves: vigia da estátua e endereço como
Carteira de trabalho de José Manoel Gonçalves: vigia da estátua e endereço como ‘Alto do Corcovado’ Foto: Agência O Globo

Foi ideia dela e da mãe, Dulce, já falecida, realizar o sonho de Floriano após sua morte: reformar a capela do Redentor, dedicada à Nossa Senhora Aparecida, que Magda carrega em forma de medalhinha num cordão. E a empreitada foi possível graças a uma bela descoberta: o pai deixou R$ 100 mil numa aplicação. Com o aval da Igreja, foi tocado o projeto, simples e elegante — respeitando o desejo de dom Eusébio Scheid, cardeal-arcebispo do Rio na época — assinado pelo arquiteto Sérgio Jardim, com teto azul de estrelinhas do iluminador Maneco Quinderé. A obra ficou pronta em 2007, permitindo a realização no local de batizados e casamentos, já que o Cristo, em 2006, havia se tornado santuário — o primeiro a céu aberto do mundo. Uma curiosidade é que Floriano gostaria que a capelinha fosse toda coberta de mármore, mas a filha sempre deixou claro que era contra. E dizia: “pai, você quer o mausoléu de Napoleão!”.

Na época da reforma, Magda preferiu que seu nome não fosse divulgado. Após tanta dedicação, o destino não foi muito generoso com a família em relação ao Cristo. Ela precisou deixar os negócios lá em cima no início de julho deste ano depois que, em fevereiro, foram definidos os vencedores de um chamamento público feito pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, para a operação das lojas no alto do Cristo. Essa concessão, no entanto, é questionada na Justiça, sob acusação de direcionamento do resultado e ilegalidades administrativas. Para o Ministério Público Federal, o correto seria a realização de uma licitação. O ICMBio busca nos tribunais, com ações de reintegração de posse, tomar conta dessas operações comerciais, numa guerra com a Igreja, que afirma deter toda a área que vai do primeiro degrau ao platô, conforme cessão de 1934, por parte do presidente Epitácio Pessoa, que estabelecia uma área para o monumento católico de de 477 metros quadrados. O documento foi renovado em 1981.

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A briga é tão feia que o padre Omar Raposo, reitor do Santuário Cristo Redentor, foi barrado no mês passado por funcionários do ICMBio quando subia para celebrar um batizado. Para o jornalista Rodrigo Alvares, autora de “Redentor” (Globo Livros), a injustiça neste casso começa com o decreto de Epitácio Pessoa, que não previu acessos ao monumento construído com dinheiro dos católicos.

— E, agora expulsam a família que lavava o Cristo. Isso é um descaso com a história — sentencia Rodrigo.

As lojas seguem fechadas, assim como o restaurante, que não recebeu ofertas. Magda ainda guarda material na antiga casa do avô, como souvenirs que sobraram das lojinhas. Com serenidade, mas também tristeza, ela revela que, desde que foi obrigada a sair do Cristo, não quis voltar mais. O que resta das lojas, Magda, que não tem filhos, pretende doar à Igreja, assim como já fez com documentos históricos que mantinha em casa. Por outro lado, a neta do primeiro funcionário que se tem notícia do Cristo, e também primeiro morador, católica praticante (ela não perde uma missa de domingo), continua perto da “casa de Jesus”. Aliás, ela é quase uma vizinha: do terraço de sua casa, vê-se o Redentor. E ela é uma devota orgulhosa:

— Eu boto desodorante no sovaco esquerdo dele! — brinca Magda, inegavelmente uma figura familiar do Cristo. — Como seria muita pretensão me considerar filha do Cristo, prefiro dizer que me sinto neta do monumento.





Fonte: G1